domingo, 16 de janeiro de 2011

O nada é quase tudo - Flávio Dieguez

Quase todo o Universo é formado de puro vazio. E esse vazio completo - o nada - é muito mais pesado que todo o resto do cosmo. Não entendeu? Os cientistas também não. Mas a história por trás disso é fascinante

A história das descobertas sobre o Universo tem sido uma humilhação atrás da outra para a humanidade. Um resumo: há 2 mil anos, imaginava-se que éramos o ápice da criação e nosso planeta, o centro do mundo. Mas a Terra acabou se revelando um dos muitos súditos do Sol, e o Homo sapiens, um neto recente na genealogia dos macacos. Até o Sol, que foi um símbolo da divindade em outros tempos, não passa de um grão de poeira brilhante entre incontáveis estrelas. O orgulho humano, naturalmente, ficou reduzido a praticamente nada.
Mas eu disse nada? Não foi por acaso. É que não chegamos ainda ao fundo do poço – e o fundo do poço é justamente o nada. Nadinha de nada. Elimine todo tipo de matéria ou de radiação, até os gases mais rarefeitos e as menores partículas atômicas. Agora estenda a limpeza aos quatro cantos do espaço. Você criou um Universo vazio. Claro que isso é um absurdo – algo como uma laranja sem gomos nem casca.
Mas vale a pena insistir nessa experiência imaginária porque os cientistas que estudam o Universo fizeram algo parecido com ela. O que descobriram é, ao mesmo tempo, muito difícil de acreditar e praticamente impossível de contestar. Especialistas de várias universidades americanas, com base em imagens da radiação de fundo do Universo – o brilho que sobrou do Big Bang –, chegaram à conclusão de que, se você tirar tudo o que é possível do cosmo, toda matéria, todos os micróbios, as rochas, animais, galáxias, átomos, luz, ele ainda continua pesando três quartos do que pesava antes. Para ser preciso, restam 73% da massa original.
Nenhuma pessoa sensata aceitaria a sugestão de que essa é a massa do nada. Só que os físicos, cosmologistas e astrônomos não são pagos para terem bom senso – sua obrigação é investigar o cosmo com todo rigor e descobrir do que ele é realmente feito, por mais estranho que possa parecer. Eles estão, há muito tempo, convencidos de que, mesmo num lugar vazio, existe alguma coisa (veja na próxima página uma breve história do conceito do nada). Mas nem essa gente tão acostumada a surpresas esperava que essa alguma coisa fosse a maior coisa que existe, a ponto de carregar, sozinha, três quartos da massa do Universo. O Universo é quase todo nada (veja no quadro da página 72 a medida do quanto ele é vazio).
Esse paradoxo é o mais impressionante e assustador de todos os pesadelos para o velho e cada vez mais distante sonho da humanidade – o de decifrar os segredos do cosmo. As descobertas são mais um golpe duro no nosso orgulho. Até porque, mesmo entre aqueles 27% que sobram quando excluímos o nada, 23% são, na verdade, um tipo bem estranho de matéria: a matéria escura, que contém esquisitices como os buracos negros, sobre a qual sabemos bem pouco. Nós – as coisas feitas de átomos, como pessoas, planetas, estrelas e galáxias – não passamos de 4% do total. Essa é a verdadeira medida da nossa insignificância cósmica.
O mais chocante é descobrir, a essa altura dos acontecimentos, que somos grãos de poeira suspensos entre o nada. Não é muito fácil explicar o que isso significa. A saída é imaginar que o nada está embutido dentro do próprio espaço. Cada grama de matéria está permeado por uma imensidão invisível de nada. Esta revista, nas suas mãos, contém toneladas de nada. E você, leitor – não leve a mal –, está cheio de nada. Pense em uma malha muito fina escondida debaixo de cada trilionésimo de milímetro do cosmo e que atravessa tudo, inclusive os nossos corpos. Com um detalhe: essa malha é totalmente imperceptível e inofensiva em condições normais, mas é muito maior do que tudo o que está "acima" dela. Caso contrário, não teria o peso que tem. Os cientistas costumam descrevê-la como um abismo imenso, escavado sob cada ponto do espaço. E até eles ficam assustados com essa imagem.
"Quem garante que, neste exato momento, o Universo não está prestes a ser tragado para dentro desse vazio?", afirma o astrônomo americano Sten Odenwald, com a preocupação típica de quem sabe demais. "E se algum acidente nos laboratórios nos atirar para dentro do nada?" Odenwald é autor de um dos muitos livros recentes, todos escritos por cientistas perplexos com essa nova e contraditória cara da realidade. Logo na abertura de seu livro (Patterns in the Void, ou "Padrões no Vácuo", inédito no Brasil), ele compara a descoberta do nada às "constelações negras" dos incas – que, em vez de traçar desenhos no céu ligando as estrelas, admiravam e temiam as manchas escuras do céu, formadas pelas áreas sem estrelas. Estaríamos agora numa situação parecida: passamos séculos estudando pontos de luz, para agora descobrir que eles são meras exceções num cosmo repleto de sombras.
Mas como é que os cientistas encontraram esse nada todo? Ele funciona mais ou menos como o sistema financeiro. Suponha que você é empresário, mas não tem capital. Então faz um empréstimo, aplica o dinheiro e quita a dívida com a renda do negócio. Resultado: você, que não tinha nada, não só devolve o que pegou como passa a ter alguma coisa. Essa também é a lógica que rege o comércio entre o espaço comum e o nada que permeia tudo: em certas ocasiões, o espaço pode emprestar um pouco de matéria do vazio. Por exemplo, quando se aciona um acelerador de partículas, um equipamento que provoca uma trombada gigante entre minúsculos componentes do átomo, surge da batida outra subpartícula que não estava lá antes. É que a enorme energia liberada puxa do nada (por empréstimo) um pedacinho de matéria que estava escondido lá. A diferença entre essa economia e a dos investidores é que nela não há chance de calote.
Tudo o que se pega volta automaticamente para o dono no prazo estipulado, incrivelmente curto. Nas finanças cósmicas, o giro do capital dura bilionésimos de segundo. As partículas que surgem somem quase imediatamente.
Por isso o nada parece vazio: quem olha de relance não vê as transações e pensa que o lugar ficou vago o tempo todo. Só quando os físicos passaram a olhar o espaço com a atenção necessária, usando aceleradores de partículas e monitorando com imensa precisão o que acontece após uma colisão, começaram a perceber as entradas e saídas de matéria na contabilidade do vácuo. Mas ainda não se sabe que tipo de moeda está guardada no Banco Central do Universo – em outras palavras, ninguém entende bem como funciona toda aquela matéria escondida. Isso porque os empréstimos já chegam ao espaço usual convertidos em moeda comum, ou seja, na forma de partículas conhecidas – como os elétrons, prótons, fótons e similares. Ninguém os viu na forma como são normalmente.
Nesse ponto, Odenwald tem razão. Estamos apenas começando a mexer com algo muito grande que não entendemos bem. Afinal, não é fácil emprestar partículas do nada. Elas surgem e tornam a sumir bem antes de percorrer uma distância equivalente ao diâmetro de um núcleo atômico. Daí por que o nada demorou tanto para ser identificado. Essas subpartículas são notadas desde o início do século 20, mas naquela época apareciam em quantidades insignificantes – ninguém desconfiava que fossem tão importantes.
Por sorte, o próprio Universo se encarregou de iluminar um pouco o alvo dos detetives. Foi quase sem querer, em uma pesquisa realizada com telescópios no Chile e em outras partes do mundo, em 1997. A idéia era verificar se a expansão do Universo perdia força. Só para lembrar, o cosmo nasceu há 14 bilhões de anos numa explosão apelidada de Big Bang, e de lá para cá vem crescendo. A expectativa, naquela época, era verificar que a expansão já estivesse mais lenta. Em vez disso, os astrônomos viram que ela está acelerando cada vez mais. Ninguém conseguia enxergar qual motor poderia estar expandindo o cosmo inteiro. A única possivel explicação – tente adivinhar – é que todo o nada escondido entre a matéria a esteja empurrando.
Todos os dados coletados desde 1997 confirmam essa hipótese, indicando que a aceleração cósmica pode ser uma das maiores descobertas de todos os tempos. As porcentagens da composição do Universo são a demonstração mais espetacular de que o nada é um poço sem fundo, cheio de energia cósmica cristalizada. Ops, energia cristalizada? Ninguém falou que ia ser simples – você começou a ler porque quis.
Pulemos para outra analogia – chega de economia. Pense na água. Quando a temperatura baixa, seus átomos se mexem menos, acalmam-se, e suas propriedades mudam: ela vira gelo. Os físicos acham que algo parecido aconteceu com o nada. No começo, quando o Big Bang deixou o Universo quente à beça (sua temperatura, em graus Celsius, se escreve com o 1 seguido de 30 zeros), o nada ainda não existia. O que existia eram partículas bem parecidas com os prótons, elétrons, nêutrons e fótons de que o tudo é feito – pequenos pedaços de matéria se movendo em alta velocidade. À medida que o Universo foi esfriando, essas partículas se acalmaram como ocorre com a água quando congela. O nada é o resultado disso – é essa energia cristalizada. Quando ela acalmou, ficou indetectável. E, quando um físico provoca uma trombada cósmica num acelerador de partículas, a energia liberada é tão enorme que agita de novo o pedacinho do nada, fazendo-o deixar de ser nada.
O cosmo cresceu muito desde o Big Bang e seu calor, com o tempo, se diluiu. Hoje a temperatura média do Universo é de 270 graus negativos. O nada está congelado desde segundos depois do Big Bang, quando a temperatura caiu para pouco mais de 1 trilhão de graus. Em poucas palavras, isso significa que a matéria de que ele é feito – seja ela qual for – simplesmente sumiu. Passou a não ter a menor interferência no que acontece à sua volta. Por isso é que, no Universo de hoje, ela é... nada. Quer dizer que o nada está mortalmente quieto: armazenou a imensa energia do Big Bang e acomodou-se. Virou o esqueleto do cosmo.
Mas é exagero dizer que o nada sumiu para sempre. Primeiro porque a aceleração cósmica está aí, mostrando que pode haver um resíduo do nada ainda ativo. Depois porque, como acontece com o gelo, basta reaquecer o vácuo para que a matéria-esqueleto saia do seu abismo para o andar de cima do Universo. Até hoje, desde que, em 1930, começou-se a fazer experiências com os precursores dos aceleradores de partículas, o equivalente a 1 863 272 195 prótons foram trazidos do nada – uma insignificância. Não conseguimos ainda provocar o aparecimento de pedaços maiores, que poderiam nos ajudar a descobrir do que é feito o nada. A primeira tentativa mais ousada de mexer nele está em curso há três anos, em uma máquina de 360 milhões de dólares, instalada no Labotório Nacional de Brookhaven, nos Estados Unidos. Chama-se Colisionador Relativístico de Íons Pesados, e sua função é fazer núcleos do átomo de ouro colidir a quase 1 bilhão de quilômetros por hora.
Isso eleva a temperatura no ponto de colisão a 1,5 trilhão de graus Celsius, o suficiente para forçar um pedacinho do nada a mostrar sua face.
Foi justamente essa máquina que acendeu a luz de alerta para Odenwald. Ele acha que existe certa falta de respeito diante do desconhecido, como se tudo o que pesquisamos fosse para o bem e não houvesse lugar para o mal dentro do conhecimento. Tudo bem: mesmo com cálculos aproximados, dava para saber que a chance de um acidente em Brookhaven era praticamente nula. Afinal, ela só é capaz de abrir uma torneirinha de energia pouco maior que o diâmetro de um átomo de ouro, ou seja, 100 mil vezes menor que 1 milímetro. Que mal poderia haver?
Que tal uma reação em cadeia? As bombas atômicas também começam a vomitar energia a partir de uns poucos átomos de urânio. Só que essa energia desequilibra outros átomos e assim por diante, numa escalada cujo resultado conhecemos bem. Em Brookhaven a situação seria infinitamente pior, porque as reações nucleares, dentro das bombas, afetam apenas o urânio. Mas a energia do vácuo é universal, não tem fronteira – ela está em cada milímetro de tudo. Poderia passar do ouro para as paredes do colisionador, para o solo e para o planeta inteiro. Poderia vazar pelo vácuo entre os planetas. Foi isso que o teórico Frank Wilczek, da Universidade Princeton, disse casualmente numa entrevista. Alguns dias depois, deu no New York Times: "Máquina do Big Bang poderia destruir a Terra".
Isso forçou os pesquisadores a refazer todos os cálculos. No final, não havia mesmo risco. Mas Odenwald acha que não aprendemos ainda a lição de humildade que a ciência impõe. Não apenas porque mostra como somos insignificantes diante do cosmo: para ele, o que mais faz falta é respeito pelos seus mistérios. Algo que os incas, que viam constelações nos espaços sem estrelas do céu, consideravam tão importante quanto o conhecimento em si.

200 a.C.
O filósofo grego Aristóteles diz que não é possível a existência de espaço sem matéria. Ele cria o lema: "A natureza tem horror ao vácuo"

1643
O italiano Evangelista Torricelli, discípulo de Galileu, cria a primeira bomba de vácuo. A experiência é o primeiro passo para derrubar a doutrina de Aristóteles

1927
A física já aceita plenamente que existe espaço sem matéria. Mas o inglês Paul Dirac sugere que partículas de antimatéria poderiam brotar espontaneamente do vácuo

1947
O americano Richard Feynman incorpora de vez a idéia de que partículas atômicas podem surgir do vácuo por um ínfimo instante e voltar a desaparecer no vazio

1948
Hendrik Casimir põe duas chapas metálicas no vácuo, separadas por 0,02 milímetro. Elas ficam eletrificadas. Hoje se pensa que essa eletricidade vem da energia do vácuo

1980
Alan Guth e André Linde mostram que, ao nascer, o Universo teve um crescimento desabalado por bilionésimos de segundo. A causa: uma liberação formidável de energia do vácuo

1997
Descobre-se que o cosmo está de novo crescendo em ritmo acelerado. É possível que o novo impulso seja um resíduo de energia do vácuo, ainda em ação

2003
A análise de dados do satélite-telescópio WMAP leva a uma conclusão absurda: a de que 73% do peso do Universo vem do vazio. Absurda, porém incontestável

O VÁCUO DO DIA-A-DIA
É o das embalagens a vácuo. Consiste em reduzir em dez vezes a quantidade normal de ar na atmosfera. Num volume como o de um dado (1 cm3) existem 5 x 1019 moléculas de ar

VÁCUO DE ALTA QUALIDADE
Muito mais rarefeito que o das embalagens, esse vácuo existe dentro das lâmpadas comuns. É medido em 5 x 1012, ou 5 trilhões de moléculas ou átomos por cm3

O MELHOR QUE EXISTE
Só os grandes laboratórios especializados conseguem chegar à marca de 103, ou mil moléculas por cm3

NO ESPAÇO INTERESTELAR
Entre as estrelas existe muita matéria solta, como poeira ou gases. Esse material corresponde a um vácuo mil vezes maior que qualquer um que consigamos fazer e se mede em exatamente uma molécula por cm3

O UNIVERSO INTEIRO
Quando se considera o volume total do Universo, já não dá para achar nem uma molécula ou átomo num volume de 1 cm3 porque, na média, só se acha uma molécula a cada 10 milhões de cm3 . Não é que exista pouca matéria: a distância entre os astros é muito grande e aumenta o vácuo, na média

Na livraria:
Patterns in the Void – Why Nothing Is Important, Sten Odenwald, Westview Press, EUA, 2002
O Universo Elegante, Brian Greene, Editora Schwarcz, 2001
The Accelerating Universe, Mario Livio, John Wiley & Sons, EUA, 2000


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