quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Mentirosos Inatos - por David Livingstone Smith

Por que mentimos, e por que somos tão bons nisso? A resposta é simples: porque funciona.

A dissimulação atravessa toda a história da humanidade, nutrindo a literatura desde o astuto Ulisses de Homero aos livros de maior sucesso popular de hoje. Uma ida ao cinema, e é grande a probabilidade de que o filme aborde alguma forma de ardil. Tais histórias talvez nos sejam muito fascinantes porque o mentir permeia a vida humana.
Mentir é uma habilidade que brota das profundezas de nosso ser, e nós a usamos sem cerimônia. Como escreveu o grande observador americano Mark Twain há mais de um século: "Todos mentem... todo dia, toda hora, acordado, dormindo, em sonhos, nos momentos de alegria, nos momentos de tristeza. Ainda que a boca permaneça calada, as mãos, os pés, os olhos, a atitude transmitem falsidade". Enganar é fundamental para a condição humana. A convicção de Twain é validada por pesquisa.  Um bom exemplo é um estudo realizado em 2002 pelo psicólogo  Robert S. Feldman, da Universidade de Massachusetts, em Amherst.  Feldman filmou em vídeo estudantes que haviam sido solicitados a conversar com  desconhecidos.  Posteriormente, pediu que analisassem as fitas e calculassem o número de mentiras que haviam contado. Uma considerável porcentagem de 60% admitiu ter mentido pelo menos uma vez durante os dez minutos de conversação, e a média do grupo nesse período foi de 2,9 inverdades. As transgressões variaram de exageros propositais a mentiras deslavadas. O interessante é que, embora homens e mulheres tenham mentido com a mesma frequência, Feldman constatou que as mulheres pareceram mais propensas a mentir para fazer com que o desconhecido se sentisse bem, enquanto os homens mentiram mais para se valorizar.
Em outro estudo dos anos 90, realizado por David Know e Caroline Schacht, ambos agora na Universidade da Carolina do Leste, 92% de estudantes universitários confessaram ter mentido para uma parceira sexual, atual ou anterior, o que fez os pesquisadores se perguntarem se os restantes 8% também não teriam mentido. E, embora há muito se saiba que os homens tendem a mentir sobre o número de suas conquistas sexuais, pesquisa recente mostra que as mulheres tendem a minimizar seu grau de experiência sexual.
Quando solicitadas a preencher questionários sobre seu comportamento e postura sexual, as mulheres que foram ligadas a um detector de mentiras fictício relataram ter tido o dobro de casos que as que não foram, demonstrando as últimas menos honestidade em suas respostas. É irônico que os pesquisadores tenham tido de usar de um artifício enganoso para conseguir delas a verdade.
Tais referências são apenas alguns dos muitos exemplos do hábito de mentir que apimentam os registros científicos. E ainda assim a pesquisa a respeito quase sempre focaliza o mentir em seu sentido mais estreito - literalmente dizer coisas que não são verdadeiras. Mas nosso fetiche vai muito além da falsidade verbal. Mentimos por omissão e por intrincadas sutilezas. Estamos também empenhados em incontáveis formas de tapeações não-verbais: usamos maquilagem, perucas, cirurgias cosméticas, vestuário e outras formas de adorno para disfarçar nossa verdadeira aparência e fragrâncias artificiais para dissimular os odores de nosso corpo. Choramos lágrimas de crocodilo, fingimos orgasmos, disparamos "bom dia!" com sorrisos falsos. Mentiras verbais são apenas uma pequena parte da vasta tapeçaria de falsidade humana.
A pergunta óbvia que todo esse relato suscita é: por que mentimos com tanta facilidade? E a resposta: porque funciona. O Homo sapiens que melhor consegue mentir leva vantagem sobre seus pares na luta incansável para o sucesso reprodutivo que move a máquina da evolução.
Como humanos, devemos nos enquadrar em um sistema social fechado para sermos bem-sucedidos, ainda que nosso alvo principal seja nos colocarmos acima de todos os demais. Mentir ajuda. E mentir para nós mesmos - um talento desenvolvido por nosso cérebro - ajuda-nos a aceitar nosso comportamento fraudulento.

Passaporte para o Sucesso

Se essa verdade crua nos incomoda, podemos encontrar certo consolo ao pensar que não somos a única espécie a explorar a mentira.
Plantas e animais comunicam-se entre si por sons, rituais exibicionistas, cores, aromas e outros métodos, e os biólogos ingenuamente chegaram a supor que a única função desses sistemas de comunicação fosse transmitir informações precisas. Quanto mais aprendemos sobre essas espécies, mais claro fica o quanto se esforçam para enviar mensagens imprecisas.
A orquídea Ophry speculum, por exemplo, exibe lindas flores azuis que se assemelham a vespas do sexo feminino. A flor também fabrica um coquetel químico que simula os feromônios liberados pelas fêmeas para atrair parceiros. Essas pistas visuais e olfativas mantêm os pobres machos na flor o tempo suficiente para garantir que uma boa quantidade de pólen seja aderida ao corpo até que voem para tentar a sorte no disfarce de outra orquídea. É claro que a orquídea não tem a intenção de enganar a vespa. A camuflagem faz parte de seu desenho físico porque, no decorrer da história, as plantas com essa capacidade conseguiram transmitir com mais facilidade seus genes. Outros seres também empregam estratégias enganadoras. Quando um predador se aproxima da inofensiva cobra Heterodon platyrhino, o formato de sua cabeça muda, ela se transveste em peçonhenta e, sibilando ameaçadoramente, se posta como se fosse atacar, mantendo, contudo, a boca discretamente fechada.
Esses casos e outros mostram que a natureza favorece o engodo por vantagens de sobrevivência. Os artifícios se tornam mais sofisticados quanto mais próximos se chega ao Homo sapiens na cadeia evolutiva.
Reflita sobre esse incidente entre Mel e Paul: Mel cavava furiosamente com as mãos o rochoso solo etiopiano para extrair um tipo de bulbo grande e suculento. Estavam na estação da seca, e a comida era escassa. Esses bulbos comestíveis, parecidos com os da cebola, são o principal alimento durante os longos e difíceis meses da estação. O pequeno Paul estava sentado a pouca distância de Mel e observava seu trabalho. A mãe o deixara brincando na grama, e, embora não estivesse à vista, Paul sabia que ela o ouviria se precisasse dela. Quando Mel finalmente conseguiu, com um puxão, arrancar seu prêmio da terra, Paul soltou um grito estridente de abalar a paz da savana. A mãe voou para ele. Coração disparado e adrenalina a toda, ela entrou em cena e rapidamente avaliou a situação: Mel havia obviamente ameaçado seu querido filho. Aos berros, ela irrompeu sobre a desnorteada Mel, que largou o bulbo e fugiu. O esquema de Paul estava completo. Após uma olhada furtiva para ter certeza de que ninguém estava vendo, avançou sobre o bulbo e começou a comê-lo. O truque deu tão certo que ele o usou várias vezes antes que alguém percebesse. Os atores nesse drama da vida real não eram pessoas. Eram macacos babuínos chacma, descritos, em 1987, pelos primatologistas Richard V. Byerne e Andrew Whiten, da Universidade de St. Andrews, na Escócia, em um artigo da revista New Scientist. O fato foi posteriormente recontado no livro de Byrne, de 1995, The thinking ape. Em 1983 Byrne e Whiten começaram a notar táticas enganosas entre os babuínos das montanhas em Drakensberg, África do Sul. Os primatas "Catarrhini", grupo que inclui os macacos do Velho Mundo e nós mesmos, são todos capazes de taticamente ludibriar membros de sua própria espécie. Não é com a aparência que enganam, como a da orquídea citada, nem com rotinas comportamentais, como as da cobra. O repertório dos primatas é calculado, flexível e muito sensível aos contextos de mudança social.
Byrne e Whiten catalogaram muitas dessas observações e a partir delas desenvolveram sua celebrada hipótese de inteligência maquiavélica.
Segundo essa teoria, a extraordinária explosão da inteligência na evolução dos primatas foi impulsionada pela necessidade de dominar formas cada vez mais sofisticadas de trapaças e manipulações sociais. Os primatas tiveram de ficar espertos para acompanhar o desenvolvimento do jogo social. A hipótese da inteligência maquiavélica sugere que a complexidade social impulsionou nossos ancestrais a se tornarem cada vez mais inteligentes e adeptos a alterar rotas, negociar, blefar e conluir. Isso significa que ser mentiroso é inato aos humanos. E, em linha com outras tendências evolucionárias, nosso talento para dissimulação supera o de nossos parentes mais próximos em várias ordens de grandeza.
A coreografia complexa do jogo social permanece central em nossa vida hoje. Aqueles que melhor enganam continuam a acumular vantagens negadas a seus pares mais honestos ou menos competentes. A mentira nos ajuda a facilitar interações sociais, manipular os outros e fazer amigos. Existe até uma correlação entre popularidade social e habilidade de enganar. Falsificamos nossos currículos para conseguir emprego, plagiamos trabalhos para melhorar nossas médias escolares e iludimos potenciais parceiros sexuais para seduzi-los à cama. Pesquisas mostram que os mentirosos conseguem com mais frequência obter emprego e atrair pessoas do sexo oposto para relacionamento. Vários anos depois Feldman demonstrou que os adolescentes mais populares na escola são também os melhores a enganar seus pares. Mentir continua a funcionar. Embora arriscado mentir o tempo todo (lembre-se do destino do menino que gritou: "Lobo!"), mentir frequentemente e bem continua um passaporte para o sucesso social, profissional e econômico.

Enganando a nós mesmos

Ironicamente, a principal razão de sermos tão bons para mentir aos outros é que somos bons para mentir a nós mesmos. Há uma estranha assimetria em como partilhamos a desonestidade. Embora estejamos sempre prontos para acusar os outros de nos enganar, somos incrivelmente distraídos com nossa própria duplicidade. Experiências de termos sido vítimas de falsidade são gravadas indelevelmente em nossa memória, mas nossas próprias prevaricações escapam tão facilmente de nossa boca que geralmente nem nos damos conta delas.
O estranho fenômeno do autoengano é objeto da perplexidade de filósofos e psicólogos há mais de 2 mil anos. A ideia de que uma pessoa possa iludir a si mesma parece tão sem sentido quanto trapacear no jogo de paciência ou roubar dinheiro da própria conta bancária. Mas o caráter paradoxal do autoengano deriva da ideia, formalizada pelo filósofo francês René Descartes no século XVII, de que a mente humana é transparente para o próprio indivíduo e que a introspeção permite um entendimento preciso de nossa vida mental. Por mais natural que essa perspectiva seja para a maioria de nós, ela se revela profundamente equivocada.
Se pretendemos entender o autoengano, precisamos nos valer de uma concepção cientificamente mais segura de como a mente funciona. O cérebro engloba um número de sistemas funcionais. O sistema responsável pela cognição - a parte pensante - é de certa forma distinto daquele que produz experiências conscientes. Ambos se comunicam de modo análogo à relação entre o processador e o monitor de um computador pessoal. O funcionamento ocorre no processador; o monitor só faz mostrar as informações que o processador transfere para ele. Da mesma maneira, os sistemas cognitivos do cérebro processam o pensar, enquanto a consciência revela as informações recebidas. A consciência tem um papel menos importante na cognição do que anteriormente se supunha.
Esse quadro geral é sustentado por significativa evidência experimental. Alguns dos mais notáveis e discutidos estudos foram conduzidos há várias décadas pelo neurocientista Benjamin Libet, atualmente professor emérito da Universidade da Califórnia, em San Diego. Em um experimento, Libet posicionou indivíduos em frente a um botão e a um relógio cujo ponteiro se movia rapidamente. Ele então pediu que, ao sentirem vontade, pressionassem o botão, registrando a hora mostrada no relógio no momento em que sentiram o impulso para pressionar o botão. Libet também colocou, em cada um dos participantes, eletrodos sobre o córtex motor, que controla o movimento, para monitorar a tensão elétrica à medida que o cérebro se preparava para iniciar uma ação. Ele descobriu que nosso cérebro começa a se preparar para iniciar uma ação mais que três décimos de segundo antes de decidirmos conscientemente agir. Em outras palavras, apesar das aparências, não é a mente consciente que decide desempenhar uma ação: a decisão é tomada inconscientemente. Embora nossa consciência goste de ter o crédito (por assim dizer), ela é meramente informada de decisões inconscientes após o fato. Esse e outros estudos sugerem que somos sistematicamente iludidos sobre o papel que a consciência tem em nossa vida. Por mais estranho que pareça, a consciência talvez só faça dispor os resultados da experiência inconsciente.
Esse modelo geral da mente, sustentado por vários outros experimentos, nos fornece exatamente o que precisamos para resolver o paradoxo do autoengano - pelo menos em teoria. Conseguimos nos enganar invocando o equivalente a um filtro cognitivo entre o conhecimento inconsciente e o conhecimento consciente. O filtro prioriza informações antes que alcancem a consciência, impedindo que os pensamentos selecionados proliferem pelas vias neurais até se tornar conscientes.

Solucionando o Problema de Pinóquio

Mas por que filtraríamos informações? Se considerada de uma perspectiva biológica, essa noção apresenta um problema. A ideia de que temos uma tendência evolutiva de nos privar de informações soa muito implausível, arriscada e biologicamente desvantajosa. Uma vez mais, porém, podemos encontrar uma pista em Mark Twain, que nos legou uma explicação surpreendentemente compreensível: "Quando uma pessoa não consegue enganar a si mesma", escreveu ele, "não há muita chance de conseguir enganar os outros." A vantagem do autoengano é que nos ajuda a mentir aos outros de maneira mais convincente.

Ocultar a verdade de nós mesmos à oculta dos outros

No começo dos anos 70, o biólogo Robert Trivers, atualmente na Universidade de Rutgers, deu comprovação científica ao "insight" de Twain. Segundo Trivers, nosso talento para o autoengano poderia ser a solução para um problema de adaptação enfrentado repetidamente por ancestrais humanos na tentativa de enganar uns aos outros. Enganar pode ser um negócio arriscado. Dentro do bando tribal e caçador, que presumivelmente era o ambiente social padrão em que nossos ancestrais hominídeos viviam, ser pego em ato escuso poderia resultar em ostracismo ou banimento da comunidade, tornar-se isca para hienas. Como nossos ancestrais eram primatas experientes e altamente inteligentes, houve um momento em que tomaram consciência desses perigos e aprenderam a ser mentirosos autoconscientes.
Essa consciência criou um problema novo. Mentirosos que se sentem desconfortáveis e tensos não mentem bem. Como Pinóquio, eles se traem por comportamentos involuntários, não-verbais. Há muita evidência experimental indicando que os humanos são notadamente adeptos a inferir sobre os estados mentais uns dos outros com base em uma mínima exposição a informações não-verbais. Como Freud comentou certa vez: "Nenhum mortal consegue guardar segredo. Ainda que seus lábios estejam silentes, as pontas de seus dedos falam; todos os seus poros o traem". No esforço para dominar nossa crescente ansiedade, podemos automaticamente aumentar o tom de nossa voz, corar, transpirar frio, ter coceira no nariz ou fazer pequenos movimentos com os pés como se quiséssemos fugir.
Podemos também, opostamente, controlar ao máximo o tom da voz e tentar conter movimentos reveladores, levantando suspeita por nossa atitude rígida e contida. Em qualquer dos casos, sabotamos nosso próprio esforço de enganar. Hoje em dia um vendedor de carros usados pode esconder a malícia de seus olhos atrás de óculos de sol, mas não existia tal recurso durante a época do Pleistoceno. Eram necessárias outras soluções.
A seleção natural parece ter liquidado o problema de Pinóquio ao nos favorecer com a habilidade de mentir para nós mesmos. Enganar a nós mesmos permite-nos manipular egoisticamente os que nos cercam e permanecer convenientemente inocentes perante os próprios olhos.
Se isso é verdadeiro, o autoengano se fixou na mente humana como uma ferramenta para manipulação social. Como Trivers observou, os biólogos propuseram que a principal função do autoengano é enganar mais facilmente os outros. O autoengano nos ajuda a enredar outras pessoas mais eficazmente. Permite-nos mentir com sinceridade, mentir sem saber que estamos mentindo. Deixa de haver a necessidade de fazer uma encenação, de fingir que estamos falando a verdade. A pessoa que se auto engana, julga, na realidade, estar falando a verdade, e acreditar na própria história a faz ainda mais persuasiva.
Embora seja difícil testar a tese de Trivers, ela ganhou larga aceitação por ser a única explicação biologicamente realista do autoengano como uma característica adaptativa da mente humana. Essa visão também se encaixa muito bem em um considerável número de trabalhos sobre as raízes evolutivas do comportamento social que têm sido comprovados empiricamente.
Naturalmente, o autoengano não é sempre tão absoluto. Algumas vezes estamos cientes de ser incautos em nosso próprio jogo de enganar, recusando-nos teimosamente a articular de maneira explícita para nós mesmos o que estamos prestes a fazer.
Sabemos que as histórias que elucubramos não se coadunam com nosso comportamento, ou destoam dos sinais físicos, como palpitação cardíaca ou mãos suadas, que traem nosso estado emocional. Por exemplo, os estudantes mencionados anteriormente, que admitiram suas mentiras ao se ver na fita de vídeo, sabiam por vezes estar mentindo, e mesmo assim não pararam, porque esse comportamento não os incomodou.
Outras vezes, porém, estamos na feliz ignorância de que jogamos fumaça nos próprios olhos. Uma perspectiva biológica nos ajuda a entender o porquê de os mecanismos cognitivos do autoengano nos aliciarem tão fácil e silenciosamente. De maneira esperta e imperceptível, eles nos enredam em desempenhos tão elaborados que a encenação transmite total sinceridade a nós, os próprios atores.

Tradução de Rachel B. Schwartz

Viver Mente Cérebro – edição 153 - Outubro 2005



A Mentira da Felicidade

Mentir para nós mesmos pode ser uma maneira de manter a saúde mental. Diversos estudos clássicos a respeito do assunto indicam que pessoas com depressão moderada na realidade enganam menos a si mesmas que aquelas ditas normais. Lauren B. Alloy, da Universidade de Temple, e Lyn Y. Abramson, da Universidade de Wisconsin-Madison, desvendaram essa tendência, manipulando clandestinamente o resultado de uma série de jogos. Indivíduos saudáveis que participaram dos jogos inclinavam-se a levar o crédito quando ganhavam e subestimavam sua contribuição para o resultado quando não se saíam bem. Os deprimidos, entretanto, avaliavam sua contribuição com muito mais precisão. Em outro estudo, o psicólogo Peter M. Lewisohn, professor emérito da Universidade de Oregon, mostrou que os depressivos julgam as atitudes das outras pessoas em relação a eles com maior exatidão que os não-depressivos. Além disso, essa habilidade na realidade degenera à medida que os sintomas psicológicos da depressão melhoram em resposta ao tratamento.
Talvez a saúde mental repouse no auto-engano, e ficar deprimido resulte de uma falha na habilidade de enganar a si mesmo. Afinal de contas, todos vamos morrer, todos os nossos entes queridos vão morrer, e grande parte do mundo vive em abjeta miséria. Portanto, quase não há razões para ser feliz diante desse cenário.

- D. L. S



Volume cerebral

O Homo sapiens tem o cérebro grande. Nossos parentes, macacos e primatas, também. Normalmente o tamanho do cérebro das espécies aumenta com o crescimento do corpo e dinâmica metabólica, mas, segundo essa fórmula, primatas têm o volume do cérebro de criaturas duas vezes maiores. Muito do aumento advém do desenvolvimento intenso do neocórtex. Um estudo de 2004, realizado por Richard W. Byrne e Nadia Corp, da Universidade de St. Andrews, na Escócia, mostra que o uso de dissimulação pelas espécies primatas aumenta com o volume neocortical; ou seja, os membros das espécies com cérebros mais pesados tendem mais a enganar uns aos outros.  O tamanho do cérebro humano, naturalmente, é superior ao de todas as outras espécies em uma tabela comparativa.
- D. L. S.



Melhores Polígrafos

Embora aqueles que defendem o polígrafo aleguem um índice de acerto de cerca de 90%, muitos críticos dizem que essa taxa está mais próxima dos 60%. O problema é que, apesar do apelido "detector de mentira", a máquina na realidade não reconhece falsidades. Seus eletrodos, colocados em vários pontos do corpo da pessoa, medem sinais psicológicos de stress, tais como batimento cardíaco e pressão sangüínea elevados. Esses sinais freqüentemente acompanham a mentira, mas, se a pessoa conseguir mentir calmamente, há boa chance de derrotar o polígrafo. De modo oposto, o indivíduo que fala a verdade, mas está ansioso quanto ao procedimento, poderá produzir uma falsa leitura positiva.
Os cientistas estão trabalhando em uma nova geração de detectores de mentira cujo alvo é o próprio mentir. Por exemplo, o neurocientista Lawrence A. Farwell, dos Laboratórios Brain Fingerprinting, desenvolveu um método com o mesmo nome, "impressões cerebrais". O sujeito usa um capacete com eletrodos que produz um eletroencefalograma (EEG) - um registro das mudanças elétricas no cérebro. Ao monitorar a atividade neural dessa forma, Farwell afirma que pode detectar a desonestidade com precisão de quase 100%. O método se baseia em sinais reveladores de reconhecimento visual no cérebro. Por exemplo, uma pessoa sob suspeita a quem seja mostrada uma arma pode dizer que nunca a viu antes, mas seu cérebro, segundo Farewell, gerará uma onda chamada P300 que ocorre automaticamente quando reconhecemos um objeto.
Outra abordagem está sendo explorada pelo psicólogo Stephen M. Kosslyn, da Universidade Harvard. Kosslyn usa tecnologias imagéticas para estudar o que ocorre no cérebro quando mentimos. Suas descobertas indicam que o mentir está associado a uma maior atividade cerebral que o falar a verdade, e essa atividade em certas áreas do cérebro está associada a tipos distintos de mentiras.
Apesar de esses e outros métodos ainda serem controvertidos, é bem provável que a próxima década dê aos pesquisadores acesso sem precedentes aos recessos de nossa mente - para o bem ou para o mal.
- D. L. S



Para conhecer mais

O roubo do elefante branco. Mark Twain. Cosac & Naify, 2004.
The thinking primate\\'s guide to deception. Richard W. Byrne e Andrew A. Whiten, em New Scientist, no 1589, págs. 54-57, dezembro de 1987.
Who lies? Deborah A. Kashy e Bella M. DePaulo, em Journal of Personality and Social Psychology, vol. 70, no 5, págs. 1037-1051, 1996.
Natural selection and social theory: Selected papers of Robert Trivers. Robert Trivers. Oxford University Press, 2002.
Ninguém vive sem mentir. Ulrich Kraft, em Viver Mente&Cérebro, no 141.


David Livingstone Smith é diretor fundador do New England Institute for Cognitive Science and Evolutionary Psychology e autor do livro Why we lie: the evolutionary roots of deception and the unconscious mind (St. Martin\\'s Press, 2004).

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

OS DEZ MUNDOS OU DEZ ESTADOS DA VIDA

Sabedoria do Sutra de Lótus
Trechos do diálogo do Presidente da SGI, Daisaku Ikeda com coordenador e vice-coordenador do Departamento de Estudo da Soka Gakkai
Algumas colocações do livro Síntese do Budismo

            O Itinen Sanzen (Três Mil Mundos em um Único Momento da Vida) é um principio elucidado pelo grande Mestre Tient’ai ou Chi hai, que apareceu na China nos Médios Dias da Lei. O Itinen Sanzen está explicado no quinto volume do Maka Shikan (Grande Concentração de Discernimento), e se baseia no Sutra de Lótus, que contém a iluminação de Sakyamuni (Siddartha Gautama). Podemos salientar, entretanto, que o Itinen Sanzen não se originou do estudo indutivo de Tient’ai sobre o Sutra de Lótus, mas que representa a iluminação que ele atingiu pelo método intuitivo de sua vida interior com base nos ensinos do Sutra de Lótus.
            Miao-lo, o sexto sucessor de Tient’ai na China, afirma no Maka Shikan Bugyoden Guketsu (Anotações sobre o Maka Shikan): “Este Itinen Sanzen é a verdade última dos seus (Tient’ai) ensinos. Por isso, Chang-an afirmou em sua introdução: O Maka Shikan revela o ensino que o próprio Tient’ai praticou nas profundezas de seu ser”.
No sétimo capítulo do quinto volume do Maka Shikan, Tient’ai ensinou a perceber a verdadeira natureza da vida com a meditação no ‘espaço inescrutável’, tendo o princípio de Itinen Sanzen como base. Nitiren Daishonin cita essa passagem do Maka Shikan no começo do escrito “O verdadeiro Objeto de Devoção para Observação da Mente”.

            Cada instante está dotado com os Dez Estados. Simultaneamente, cada um dos Dez Estados contém todos os Dez Estados e, em conseqüência disso, uma entidade de vida possui, na verdade, cem mundos. Cada um desses mundos possui trinta domínios, que significa que em cem mundos há três mil domínios. Os três mil mundos da existência estão todos contidos em um único momento da vida. Se não houver vida, nada existe. No entanto, se houver uma fagulha de vida, esta irá conter todos os três mil mundos... É isso o que queremos dizer quando falamos do ‘domínio do incompreensível’. (The Writings of Nichiren Daishonin, pág. 354.)

            Isso é, continua o Maka Shikan, o que quer dizer com ‘domínio do incompreensível’.
            Itinen, literalmente ‘uma mente’, indica momentos da vida – que pulsa em cada instante no mortal comum –, e sanzen, o fenômeno que ela manifesta. A passagem acima mencionada mostra-nos que cada instante da vida (itinen) possui três mil mundos (sanzen) diferentes e que esse instante e os três mil mundos estão relacionados dinamicamente e integrados em uma única entidade harmoniosa.
            A frase “cada instante da vida está dotado com os Dez Estados” significa que o potencial das dez condições – Inferno, Fome, Animalidade, Ira, Tranqüilidade, Alegria, Erudição, Absorção, Bodhisattva e Buda. Lê-se “Cada um dos Dez Estados contém todos os demais e, em conseqüência disso, uma entidade de vida possui, na verdade, cem estados.” Nenhum dos Dez Estados é fixo ou isolado dos outros. A vida em qualquer um dos Dez Estados possui os outros Dez Estados em si, isto é, a vida tem o potencial para manifestar qualquer um dos Dez Estados a cada instante. Este conceito é chamado de “Possessão Mútua dos Dez Estados”. Devido ao fato de cada um dos Dez Estados conter os outros estados em si, temos o total de cem estados.
            Cada um dos Dez Estados inclui os Dez Fatores da Vida, formando assim mil mundos. Cada um dos Dez Fatores possui os Três Princípios de Individualização. Conseqüentemente, os mil mundos possuem três mil mundos. Os Dez Fatores são: Aparência, Natureza, Entidade, Poder, Influência, Causa Inerente, Causa Externa, Efeito Latente, Efeito Manifesto e Consistência do Início ao Fim. Os Três Princípios da Individualização são: Cinco Agregados da Vida (forma, percepção, concepção, volição e consciência), Ambiente Natural e Ambiente Social. O termo “três mil mundos” não é simplesmente um número, mas representa a profundidade e totalidade da vida.
            A frase citada prossegue: “Uma única entidade de vida possui todos os três mil mundos da existência. Se não houver vida, nada existe. No entanto, se houver uma fagulha de vida, esta conterá todos os três mil mundos...” Conforme a citação indicada, Itinen Sanzen é uma filosofia de vida muito sofisticada afirmando que todos os fenômenos, sem exceção, existem em cada momento da vida de cada mortal comum.
            Quanto à relação mútua entre Itinen Sanzen, o Maka Shikan afirma:

Não se pode dizer que “a mente” vem antes de “todos os fenômenos” ou que “todos os fenômenos” vêm antes da “mente”... Nem se pode dizer que alguém procede a outrem... Se alguém disser que todos os fenômenos se originam de uma mente, é uma relação vertical. Ou se alguém disser que todos os fenômenos manifestam-se na mente ao mesmo tempo, é uma relação horizontal. Nem a vertical nem a horizontal são corretas. Tudo o que alguém poderia dizer é que a mente representa todos os fenômenos e estes representam a mente. Ela é extremamente obscura, misteriosa e profunda. O conhecimento não consegue compreende-la, tampouco as palavras podem expressá-la. Por esta razão, denomina-se “o espaço inescrutável”.

            Os ensinos provisórios expostos antes do Sutra de Lótus sustentam que a mente é a base de todos os fenômenos e que estes se originam da mente. Ao contrario dessa idéia, conforme indicado no Maka Shikan, o Sutra de Lótus ensina que a mente de todos os fenômenos é “dois, mas não dois” e não podem ser separados um do outro.
            De acordo com a afirmação no Maka Shikan: “A mente representa todos os fenômenos e estes representam a mente”, a relação entre itinen sanzen é “extremamente obscura, misteriosa e profunda”, além dos poderes comuns de cognição ou da descrição. Essa é a razão porque a mente é denominada de espaço inescrutável”.
            Falando concretamente, três mil leis do Universo estão contidas em um único momento da vida, ao passo que um instante da vida permeia todas as três mil leis. Itinen permeia sanzen enquanto este está condensado no itinen. Na relação mútua entre itinen e sanzen, todos os fenômenos no Universo tomam forma. É isso que Tient’ai ensinou com seu princípio de Itinen Sanzen.
            No Tríplice Ensino Secreto (Sanju Hiden Sho), Nitikan Shonin, o 26º sumo prelado, discute a relação de itinen sanzen, da seguinte forma:

Questão: Um instante da vida é infinitamente breve. Como ele pode conter os três mil mundos?
Resposta: À luz do Sutra de Lótus, a frase “três mil mundos num instante da vida” tem dois significados: incluir e permear. Por um lado, todo Universo está incluso em cada instante da vida e, por outro, cada instante da vida permeia o Universo inteiro. Um instante da vida é uma partícula de pó que possui os elementos de todas as terras do Universo, ou uma gota d’água cuja essência não difere do vasto oceano.

            O conceito dos “três mil mundos” integra os princípios dos Dez Estados, sua possessão mútua, os Dez fatores e os Três Princípios da Individualização, todos constantes no Sutra de Lótus. Esses números multiplicados (10 x 10 x 10 x 3) dão um total de “três mil” e significam que todos os fenômenos do Universo estão incluídos numa simples entidade ou existência e mesmo um único ser esta diretamente relacionado com todas as coisas do Universo.
            No Maka Shikan, Tient’ai expôs o conceito de Itinen Sanzen e tomou-o como base para observar ‘o espaço inescrutável’, isto é, a mente. Quando alguém tenta observar sua própria vida pela meditação introspectiva e prossegue nessa busca incessantemente, no final atingirá a verdade de Itinen Sanzen.
            Em outras palavras, todas as pessoas possuem inerentemente o Itinen Sanzen, embora essa realidade seja inescrutável e esteja além da capacidade de se reconhecê-la e concebê-la.
            Como meio para observar esse domínio do inconcebível ou Itinen Sanzen inerente à vida das pessoas, Tient’ai estabeleceu várias práticas tais como A Meditação sobre os Dez Objetos[1], as Dez Meditações[2], os Vinte e Cinco Exercícios Preparatórios[3] e a Contemplação Tríplice em uma Única Mente[4].
            O Budismo de Tient’ai era extremamente difícil e suas práticas de observação da mente, por serem exclusivamente relacionadas aos domínios internos da vida, não eram dirigidas para o mundo exterior da sociedade. Além disso, a maneira de praticar ensinada por Tient’ai não era acessível à maioria das pessoas e sim a uma reduzida elite. Nitiren Daishonin, o Buda dos Últimos Dias da Lei, ultrapassando as limitações do Budismo de Tient’ai, estabeleceu um meio pelo qual todas as pessoas igualmente pudessem compreender o Itinen Sanzen por si mesmas. Mais adiante examinaremos a visão de Nitiren Daishonin sobre o Itinen Sanzen em relação ao Sutra de Lótus e aos ensinos de Tient’ai. Antes disso, entretanto, gostaria de explicar cada um dos conceitos que compõem o Itinen Sanzen – os Dez Estados e sua possessão mútua, os Dez Fatores da Vida e os Três Princípios da Individualização, assim como os princípios relacionados, tais como, Três Verdades e Unicidade do Corpo e da Mente.


OS DEZ ESTADOS:

            A velocidade do tempo difere dependendo do nosso estado de vida. Em outras palavras, o “período de tempo” é relativo.
            Quanto mais energia a pessoa possuir, mais vigorosamente seu “período de vida” se adianta.
            Considerando de um outro prisma, foi comprovado teoricamente que o tempo é relativo, como podemos observar, por exemplo, na teoria da relatividade de Einstein. Para ilustrar, se viajassem pelo Universo em um foguete, considerando que a velocidade de sua viagem aumentaria, o ritmo da passagem do tempo se alteraria. Esse fenômeno é conhecido no Japão como “efeito Urashima”.
            O que denominamos como efeito Urashima, também conhecido como o “paradoxo do relógio” ou o “paradoxo dos gêmeos”. É uma hipótese a que chegamos a partir da teoria da relatividade. Isso se refere ao fenômeno por meio do qual o tempo a bordo de uma espaçonave viajando a um ritmo aproximado ao da velocidade da luz passa mais lentamente que o tempo na Terra, enquanto na espaçonave poderia parecer apenas um dia. Desse modo, uma pessoa que tivesse viajado através do espaço numa velocidade fantástica iria, ao retornar a Terra, encontrar-se deslocada no tempo, assim como a lenda japonesa de Urashima Tara.
            Isso com certeza é “relatividade”.
            De qualquer forma, o mundo que percebemos será diferente dependendo de qual dos Dez Mundos nós nos encontramos no momento. A maneira como recebemos impressões do mundo ao nosso redor, tanto espacial como temporalmente, mudará de forma radical. Poderíamos denominar isso de a função mística do “estado de vida”.
            O “estado de vida” é o ponto principal do Budismo. O Budismo não considera as pessoas em termos étnicos ou raciais nem em termos de grau acadêmico ou de posição social. Seu foco se concentra diretamente na condição do coração humano, no estado da própria vida das pessoas.
            Possuir muito poder e influência torna alguém grandioso? Entre os poderosos, há muitos que são arruinados pelos mundos da Fome e da Animalidade. Mas existem cidadãos comuns que habitam nos alegres mundos de Bodhisattva e Buda.
            Então, formar-se em uma prestigiosa universidade torna alguém superior aos outros? As pessoas de certos étnicos ou raciais são naturalmente superiores? E as que pertencem a certas classes sociais são automaticamente inferiores? Claro que não. Ainda assim, durante todo o curso da história humana até o presente, as pessoas são vistas com esse preconceito. São inenarráveis as tragédias que esse tipo de pensamento produziu!
            A história do século XX – independentemente do nazismo ou do militarismo das inumeráveis e sangrentas lutas de classes que ocorreram – é uma historia de tragédias em conseqüência dessas tendências discriminatórias.
            A discriminação é um produto cruel do preconceito e da intolerância. Podemos encontrar tendências discriminatórias semelhantes na extrema ênfase que diversas pessoas na atualidade atribuem à formação educacional.
            O Budismo, por meio da doutrina dos Dez Mundos, considera todas as pessoas em termos de seu estado de vida. Portanto, sua visão é completamente imparcial. O sofrimento de alguém que se encontra no estado de Inferno, por exemplo, é o mesmo, independentemente de a pessoa ser rica ou pobre.
            Além disso, reconhece que todas as pessoas têm potencial para o estado de Buda. A benevolência de se esforçar para ajudar as pessoas a cultivar e manifestar esse estado são a chave para a doutrina dos Dez Mundos.
            Falei a pouco sobre o paradoxo dos gêmeos ou o efeito Urashima com relação à relatividade do tempo. A lenda de Urashima Tara é um conto clássico que todos os japoneses conhecem, da qual se originou a denominação “efeito Urashima”, é uma boa referência para a doutrina dos Dez Mundos.
            A lenda começa relatando como o pescador Urashima Tara encontra um casal de crianças atormentando uma tartaruga na praia. Em termos dos Dez Mundos, o estado de vida daquelas crianças provavelmente seria o de Animalidade. Pois, assim como Daishonin afirma, “A natureza do animal  é ameaçar o fraco e temer o forte”. (END, vol. I pág. 196). E a tartaruga que está sendo atormentada estaria no estado de Inferno. Para fazer com que as crianças deixassem a tartaruga em paz, Urashima Taro dá algum dinheiro a elas. Essa atitude representa um aspecto do mundo de Bodhisattva. Poderíamos dizer agora que as crianças, que somente obedecem após terem ganhado o dinheiro, estão no estado de Fome.
            Após vários dias, a tartaruga, preocupada em demonstrar sua gratidão, visita Urashima Taro. Assim, ela o convida a realizar um passeio ao palácio do rei-dragão, que fica no fundo do mar.
            O ato de se lembrar e de ter gratidão é o estado de Tranqüilidade. A atitude de retribuir um favor comprova a humanidade de uma pessoa. Embora sendo uma tartaruga, ela ainda possui o estado de tranqüilidade. Em contraste, há pessoas que, esquecendo-se de ter gratidão pelos outros, são piores que animais. Na escritura “Abertura dos Olhos”, Daishonin ensina a importância de ter gratidão, declarando: “Até os animais sabem como retribuir um débito de gratidão”.(cf. The Major Writings of Nichiren Daishonin, vol. II pág. 104.).
            Quando chega ao palácio do rei-dragão, Taro é recebido por uma princesa, com quem passa momentos agradáveis bebendo e dançando. Nesse momento, ele definitivamente está no estado de Êxtase, ou Alegria.
            Taro vive momentos tão maravilhosos que se esquece completamente de voltar para casa e, ao se dar conta disso, três anos já haviam passado. Uma vez que está habitando o mundo do êxtase, o tempo parece passar num instante. Finalmente, Taro informa a princesa de sua partida e, quando parte, leva um pequeno baú dado pela princesa como recordação.
            Ao chegar a sua terra, Taro fica chocado com o que encontra: o mundo está completamente mudado. Os três anos que ele havia passado no palácio do rei-dragão equivaliam há trezentos anos na Terra. Ou, se preferirem, o “efeito Urashima” o havia deixado para trás, e o tempo avançou sem ele.
            Ao compreender o que havia acontecido, Urashima Taro fica completamente triste. Todos os seus parentes haviam morrido. Não possuía mais nenhum amigo. E para onde quer que olhe, tudo era estranho e desconhecido.
            Poderíamos dizer que o estado de vida de Taro, nesse momento, é o de Inferno. Tudo o que ele vê e ouve parece negar completamente sua própria existência. Não há “lugar” para ele no mundo. Em um piscar de olhos, o “período de vida” de Taro se desvaneceu por completo.
            Nesse instante, Taro abre o pequeno baú, que representa sua última esperança. Uma grande névoa sai de dentro dele e, num segundo, os cabelos de Taro embranquecem e ele se transforma em um velho cambaleante. Subitamente, ele fica fraco e cheio de rugas e, sentindo-se atordoado, senta-se na areia da praia. Essa última cena é realmente dramática. Em que estado você acredita que ele se encontra nesse momento?
            Creio que Taro, que já estava no estado de Inferno, passa para um estado de desespero ainda mais profundo. No entanto, esse seria um fim extremamente triste. E concluiríamos que a princesa deu-lhe um presente realmente cruel.
            De acordo com uma interpretação, isso indica a entrada para o mundo dos Dois Veículos, ou os estados de Erudição e Absorção.
 Nitiren Daishonin explica: “Todos os fenômenos neste mundo são incertos e rápidos. A transição das coisas está clara para nós, porque o estado dos Dois Veículos (Erudição e Absorção) está presente nos seres humanos”.(END, vol. I pág.58.) Embora a lenda não tenha deixado claro, é possível que o velho Taro tenha vislumbrado algo da impermanência da existência que ele ainda não havia compreendido.
A lenda termina deixando-nos uma mensagem: “Aqueles dias maravilhosos se foram para sempre”. Esse com certeza não é um final feliz. Ainda assim, o final parece estar nos tentando sugerir que, após ter divagado nos caminhos dos seis mundos, ele finalmente chegou ao ponto em que pôde perceber a existência dos estados de Erudição e Absorção.
            Vista de uma outra perspectiva, a lenda nos convida a uma profunda reflexão sobre o significado da vida e da existência humana.
            Quando interiorizamos a visão budista sobre a vida, conseguimos compreender a essência de qualquer coisa que vemos ou ouvimos de uma perspectiva muito mais profunda. Daí a importância de estudar o budismo e todos os outros ensinamentos.
A questão “O que é a verdadeira felicidade humana?” Forma a base da doutrina dos Dez Mundos.
A seguir, vamos analisar cada um dos Dez Estados à luz dos sutras e do Gosho.
Como premissa principal, devemos ter em mente que é somente com a revelação do princípio de possessão mútua dos Dez Estados pelo Sutra de Lótus que podemos dialogar sobre os Dez Mundos como condições da vida humana. Sem compreender que cada estado contém todos os outros Dez Estados, os seres de cada um dos Dez Estados somente poderão ser considerados como habitantes de mundos distintos e separados, e sem possuir absolutamente nenhum contato ou relação com os outros. Em outras palavras, pelo fato de os seres no mundo dos humanos – que somos nós – possuírem todos os Dez Estados em sua vida, os Dez Estados podem ser compreendidos em termos dos estados ou condições da vida. Além do mais, é por causa disso que podemos falar sobre as mudanças no estado de vida.
Os Dez Estados da vida indicam as dez condições de vida que um ser humano sente. É uma análise dos fenômenos que uma vida manifesta no decorrer de sua existência. Originalmente, os Dez Estados significam o lugar em que cada um renascia em várias existências como conseqüência do carma acumulado. Por exemplo: no mundo de Tranqüilidade ou Humanidade como ser humano, no mundo de Animalidade como animal, no mundo de Fome como um espírito faminto, e assim por diante. Entretanto, conforme vimos na Possessão Mútua dos Dez Estados, à luz do Sutra de Lótus os Dez Estados podem ser considerados como uma classificação dos vários estados ou condições da vida que uma pessoa manifesta em cada momento de sua existência. Os Dez Estados descrevem as sensações subjetivas experimentadas pelo “eu” no âmago da vida. Os nomes de cada um dos Dez Estados aparecem no 19º Capítulo, “Benefícios do Mestre da Lei”. Ele declara:

“Eles serão dotados de 1.200 benefícios de audição com os quais irão purificar seus ouvidos a fim de poderem ouvir todas as diferentes variedades de vozes e sons de um bilhão de mundos, descendo até as profundezas do Inferno Aviti, ascendendo até o Pico do Ser, e em suas partes interiores e exteriores... vozes masculinas, femininas... dos seres celestiais... dos ashuras... vozes dos habitantes do inferno, das bestas, dos espíritos famintos... vozes dos ouvintes, dos pratyekabuddhas, dos Bodhisattvas e vozes dos budas”.(LS 19, 252-253) Devemos ajudar as pessoas a superarem seus sofrimentos empregando as “vozes dos Bodhisattvas”, e as “vozes dos budas”. Não podemos simplesmente ficar calados.

Dos Dez Estados, os seis primeiros, do Inferno até a Alegria, conhecidos como “os seis caminhos”, estão fundamentados na visão do bramanismo, que foi propagado amplamente na Índia na época de Sakyamuni. Segundo o bramanismo, todos os seres habitam em lugares ou mundos que pertencem a um desses seis caminhos, e no qual eles nascem conforme suas ações passadas, ou carma. A idéia é a da retribuição conforme a lei de causa e efeito; as pessoas são conduzidas a transmigrar por esses seis caminhos de acordo com as causas que elas criam.
Os estados de Erudição até o de Buda, conhecidos como os “quatro nobres caminhos”, representam os estados daqueles que se libertaram dessa transmigração nos seis caminhos.

1. O Estado de INFERNO (Jigoku)
Essa palavra se originou do termo sânscrito naraka, que literalmente significa ‘uma prisão subterrânea’. Uma variante desse termo, naraka, ainda sobrevive na moderna expressão japonesa ‘despencar do abismo’. O equivalente em japonês de Inferno é composto por dois caracteres, ‘terra’ e ‘prisão’. A palavra ‘terra’ significa o lugar no nível mais baixo; e ‘prisão’, o estado do ser confinado, acorrentado e totalmente imobilizado. O estado de Inferno é o mais miserável de todos, no qual a pessoa permanece com as mãos e os pés acorrentados em sofrimentos.
Inferno indica um estado completamente destituído de liberdade, uma condição de sofrimento extremo pelo qual a pessoa passa como resultado de seu mau carma. Nitiren Daishonin afirma no “Verdadeiro Objeto de Devoção para Observação da Mente Estabelecido no Quinto Período de Quinhentos anos após o Falecimento do Buda”: ‘Estar irado é um estado de Inferno’. Conforme essa afirmação indica, essa é uma condição caracterizada pelo impulso de destruir a si próprio assim como tudo e todos que estiverem em seu caminho. A ira corresponde, também, a um dos três venenos – avareza, ira e estupidez. Acredito que isso se refere ao estado de alguém que, ao perceber que as coisas não saem como imaginava, colericamente, culpa as pessoas que estão ao seu redor pelo contratempo ou pela sua frustração. Porém, essa ira não possui a energia positiva para ser direcionada para o lado correto. Ao contrário, faz com que a pessoa fique totalmente consumida por um sentimento de impasse e futilidade, presa a emoções, sem conseguir manifestá-las.
Embora existam vários graus mesmo no estado de Inferno, no geral Inferno indica um estado em que viver é o próprio sofrimento; em que tudo o que a pessoa vê a faz sentir-se ainda mais miserável. Quem está nesse estado possui uma energia vital extremamente fraca e, na verdade, aproxima-se da condição de morte. Poderíamos descrever essa ‘ira’ como um gemido de uma vida que exauriu todos os caminhos possíveis para escapar do confinamento das circunstâncias que a prendem.
É possível ouvir esse gemido desesperador nas vozes torturadas dos jovens que tentam cometer suicídio ou entre os delinqüentes. ‘A vida é dolorosa demais’, dizem eles. ‘Não há lugar para mim neste mundo’.
Quando seu ‘período de vida’ aproxima-se da absoluta anulação, as pessoas podem chegar à conclusão de que não há alternativa exceto morrer. Esse é realmente o estado de Inferno. “Sinto um aperto no coração só de pensar nas pessoas que estão nesse estado”, diz o Sr. Daisaku Ikeda, presidente da SGI.
As pessoas nesse estado precisam de alguém – seja quem for – que esteja ao seu lado. Elas necessitam de alguém que fiquem ao seu lado e ouça o seu desabafo; alguém capaz de oferecer mesmo apenas umas poucas palavras de incentivo. Apenas com essa atitude é possível que a chama da ‘vida’ se acenda novamente no coração daquele que está tomado por um grande sofrimento. Somente o fato de saber que alguém se preocupa com elas faz com que o seu ‘período de vida’ aumente.
Quando as pessoas cultivam um verdadeiro sentimento de que, por pior que sejam suas circunstâncias presentes, elas não estão sozinhas – mas ligadas a outras pessoas e ao mundo –, sem falha conseguirão se levantar novamente para o desafio de viver. Esse é o poder inerente na vida. Portanto, é importante formarmos bons relacionamentos, criarmos laços de amizade com pessoas que possam influenciar nossa vida de maneira positiva e fazermos o que chamamos no budismo de ‘boas amizades’.
Nesse estado, a pessoa carrega consigo seu próprio inferno. Daibadatta[5] representa o estado de Inferno. Embora tenha sido discípulo de Sakyamuni, Daibadatta foi uma pessoa de grande maldade que por causa da inveja chegou a ponto de tentar matar seu mestre.
À luz da lei de causa e efeito, como Daibadatta perseguiu o Buda, podemos afirmar que ele estava no estado de Inferno. No entanto, considerando-o como um indivíduo, devemos concluir também que ele deve ter sofrido no mais miserável estado de Inferno.
Daibadatta provavelmente pensava que enquanto Sakyamuni estivesse por perto, nada sairia como ele desejava. Embora Daibadatta tentasse, com sua intolerância, conquistar respeito e posição, Sakyamuni sempre estava muito acima dele como se fosse a montanha do Himalaia. Daibadatta, longe de respeitar alguém que o superasse em realização, não podia tolerar a existência de tal pessoa. Essa é a deformidade de um homem invejoso.
Esse ódio e ressentimento fizeram com que o coração de Daibadatta se fechasse e congelasse. Assim é a mente de uma pessoa que está no estada de Inferno. O sentimento seria similar ao de estar com as mãos e os pés acorrentados, totalmente incapacitado de mudar a disposição de uma pessoa por si próprio. Isso representa verdadeira e unicamente o estado de Inferno.
Conforme uma biografia de Joseph Stalin[6], sempre que esse ditador soviético encontrava alguém que fosse mais notável que ele, ou que possuísse alguma habilidade excepcional, ele se inflamava com um violento sentimento de inveja e ciúme, sendo completamente tomado pelo ódio.
O autor descreve Stalin nestes termos: “embora mantivesse um aspecto tranqüilo, em seu íntimo ele tremia de pânico”; e, “externamente, sua expressão mostrava um sorriso altivo; porém, seu interior estava tomado pelas intuições, carregando consigo seu próprio inferno”.
Como não confiava em ninguém, Stalin vivia com medo e ansiedade. Acreditava que poderia ser traído a qualquer momento. A dúvida e a suspeita podem reduzir uma pessoa a um estado de desesperada agonia. A identidade de uma pessoa presa no ‘inferno da desconfiança’ torna-se incrivelmente pequena, fazendo-a sentir como se sua vida estivesse confinado a um minúsculo espaço.
É claro que também podemos considerar a inveja manifestada por Daibadatta e Stalin como uma característica do estado de Ira, bem como do estado de Alegria, visto que o desejo obstinado de manipular os outros é símbolo do Demônio do Sexto Céu, que representa a natureza corrupta e exploradora do poder, que é o lado negativo do estado de Alegria.
O estado de Inferno caracteriza-se por uma fraqueza e um profundo sofrimento em que uma pessoa se sente totalmente incapaz de mudar. Muitos acreditam que o Inferno exista sob a terra; no entanto, na verdade, é um estado no qual a vida se afunda cada vez mais sob seu próprio peso.
Uma pessoa que está sofrendo – devido à discórdia familiar, à doença ou à inveja – e cujo coração está se contorcendo de ódio pelo que quer que seja que causou tal sofrimento, será incapaz de reconhecer que a verdadeira causa para o sofrimento existe em sua própria vida. Essa pessoa carece de energia vital que a faria perceber isso e, conseqüentemente, sente ira e mágoa em relação aos outros.
Além disso, há casos em que as pessoas direcionam a ira para si próprias e para sua incapacidade de fazer algo para acabar com o sofrimento que estão passando. Nesse caso, não possuem forças para assumir a responsabilidade pela sua angustia e transformar a situação. Em vez disso, sentem apenas um frustrante ressentimento em relação à sua própria incapacidade, e sua vida dá vazão a um gemido de desespero.
Viver sem liberdade – essa é com certeza a condição de uma pessoa que está presa.
Em contraste, se uma pessoa acredita na dignidade da vida e ama as pessoas, sua mente se tornará tão expansiva e amplo quanto o céu – mesmo que esteja encarcerada. Esse com certeza é o caso de Nitiren Daishonin, como também Tsunessaburo Makiguti e Jossei Toda, primeiro e segundo presidentes da Soka Gakkai.
O presidente da África do Sul, Nelson Mandela, passou dez mil dias (vinte e sete anos) vivendo em condições na prisão que somente podem ser descritas como o inferno. Foi sua inabalável convicção de que no final conquistaria a vitória para a dignidade humana que o manteve firme durante todo aquele tempo. “Uma hora parecia um ano”, disse ele. A menos que uma pessoa tenha passado a vida atrás das grades, não poderá compreender verdadeiramente essas palavras. Ainda assim, o presidente Mandela não perdeu as esperanças. Essa é a comprovação de seu triunfo como ser humano.
            Quando as pessoas deparam com circunstancias difíceis ou ficam cercadas por dificuldades, tendem a acreditar que somente elas sofrem dessa maneira. Conseqüentemente, ficarão magoadas com as outras e com a sociedade, fechando-se em seu próprio mundo.
            O estado de Inferno que o budismo descreve não indica uma série de circunstâncias externas ou um ambiente que surge no nosso caminho. Ao contrário, indica uma pessoa possuidora de fraca energia vital sendo jogada de um lado para outro e controlada por tudo que está ao seu redor, incapaz de dar um único passo para se libertar. Esse fato não se refere a acontecimentos externos.
            Nitiren Daishonin explica: “Considerando a questão de onde estão o Inferno e o Buda, um sutra diz que o Inferno está debaixo da terra enquanto outro diz que o Buda está no oeste. Entretanto, um pensamento cuidadoso esclarecerá que ambos existem em nosso próprio corpo. Tal como o vejo, a razão para isso é que o Inferno está no coração da pessoa que insulta seu pai e está também naquele que ridiculariza sua mãe”.(END, vol. I pág. 413.).
            Os Dez Estados existem em nossa própria vida. É por isso que se não mudarmos de dentro para fora, não há outra maneira de alcançar a verdadeira felicidade.
            De acordo com os sutras, que descrevem esse estado como um local físico, existem vários tipos de infernos incluindo os oito infernos maiores (quentes), os oito infernos frios e os dezesseis infernos menores.


2. O Estado de FOME (Gaki)
O estado de Fome, a palavra deriva-se do sânscrito preta, que originalmente significa ‘cadáver’. No budismo, o termo passou a ser utilizado como o mundo da miséria, como o de Inferno ou Animalidade, aos quais as pessoas mortas podem sucumbir. Preta também significa ‘espírito ancestral’. Na Índia, considerava-se que muitos espíritos ancestrais fossem famintos e ansiosos por comidas. Parece que é por causa dessa denominação que os mortos passaram a ser chamados de ‘espíritos famintos’.
O festival japonês Bom (ou Urabon; em sânscrito, ullambana), uma cerimônia para saciar a alma de ancestrais falecidos que sucumbiram ao estado de Fome, é, algumas vezes, considerado como “fazer oferecimentos aos espíritos famintos (segaki, em japonês)”.
Daishonin afirma que o estado de Fome se caracteriza pela avareza (cf. END, vol. I pág. 57.), que é um dos três venenos.
Tient’ai declarou: “Esse estado de vida está repleto de fome e de sede; é por isso que são chamados de espíritos famintos”. É o estado de seres atormentados por uma fome insaciável. A pessoa é governada por desejos insaciáveis, incluindo não apenas os desejos por coisas materiais como alimento, roupa e dinheiro, mas também pelo desejo de obter o poder e a fama. A pessoa nesse estado é atormentada tanto física como espiritualmente por desejos implacáveis. As causas para esse estado são atribuídas às tendências negativas como avareza, ganância e inveja. O Abidatsuma Junshori Ron (Tratado sobre o Acordo com a Doutrina Correta) descreve três tipos de espíritos famintos e diz que cada um deles está subdividido em três tipos, e o Sutra Shobonenjo descreve nada menos que trinta e seis espécies de espíritos famintos. Em uma carta endereçada a Shijo Kingo, um de seus leais seguidores, datada de julho de 1271, Nitiren Daishonin também menciona tipos que representam os espíritos famintos como aqueles parecidos com caldeirões, aqueles que comem vômito, aqueles que estão sempre sedentos aqueles que invejam as propriedades alheias, aqueles que não possuem propriedades, aqueles que usam a Lei para fins maldosos e demônios com cabeça de boi e de cavalo.
Escrava da avareza e da ganância. Aqueles que estão nesse estado são empurrados de um lado para outro pelos desejos. Tal sentimento impede a pessoa de sentir liberdade interior, produzindo sofrimento. A pessoa se torna escrava de seus próprios desejos.
No entanto, comparando ao estado de Inferno, o ‘período de vida’ da pessoa é, de alguma forma, maior, mesmo que seja um pouco. A pessoa escapou de um estado de completo confinamento e desesperança e está, pelo menos, vivendo em busca de algo. Afinal de contas, o desejo também é uma manifestação de energia vital. Só que, sendo incapazes de satisfazer todos os seus desejos, as pessoas que estão no estado de Fome invariavelmente sentem uma grande frustração. A carência de alimentos, de vestimenta ou de abrigo adequados constitui um terrível problema da era moderna.
Todavia, a fome existe até nas chamadas sociedades emergentes. No ano de (1996), a revista americana Newsweek, publicou a seguinte declaração sobre a sociedade norte-americana: “O paradoxo de nossa era é que estamos sofrendo com nossos sucessos”.
Os desejos humanos são infindáveis. Por exemplo, há o desejo fundamental de viver. Existe também o desejo instintivo de alimento, o desejo materialista de posses e o desejo psicológico de receber atenção.
Há também o desejo de poder e de fama e o desejo de controlar. As pessoas também desejam ser respeitadas e amadas. É um fato não podermos viver sem desejos.
Em muitos casos, esses desejos se transformam na energia que nos capacita a avançar e a nos desenvolvermos. É por essa razão que ouvimos este ditado sobre o estado de Fome: “Esse caminho está ligado a outros caminhos e conduz tanto ao bem como ao mal.” Portanto, a questão é como utilizar esse desejo.
Aqueles que estão no estado de Fome não utilizam o desejo para criar valor; em vez disso, tornam-se seu escravo. Por causa do desejo, eles próprios sofrem e causam sofrimentos aos outros. É por isso que o estado de Fome é denominado como o ‘caminho do mal’.
A moderna civilização poderia ser descrita como uma civilização da afirmação ou da liberação do desejo. O resultado disso é a situação perversa na qual o desejo tendo aumentado em proporções gigantescas, reina como um mestre pelo qual as pessoas são escravizadas.
Em relação à causalidade do estado de Fome, Nitiren Daishonin diz: “Aqueles que pregam ensinos movidos por sentimentos impuros receberão sua retribuição”.(Gosho Zenshu, pág. 429.) Em outras palavras, ele está dizendo que aqueles que pregam movidos por sentimentos impuros por estarem consumidos por desejos de fama ou lucro irão cair no estado de Fome.


3. O Estado de Animalidade (Tikusho)
Tikusho é um termo usado para animais em geral. De acordo com o Sutra Funbetsu Gihi Ryaku e o Sutra Jojitsu, mesmo que a pessoa tenha nascido como ser humano na presente vida, caso ela constantemente resmungue ou calunie os outros, abandona-se aos prazeres sensuais em excesso ou fica freqüentemente enfurecida, poderá renascer como um animal na próxima existência. Considerando o estado de Animalidade como uma condição da vida humana, Nitiren Daishonin afirma: “A insensatez representa o estado de Animalidade”. Nesse estado a pessoa é escrava dos desejos instintivos e perde o sentido da razão e da moralidade. O escrito ‘Soberano, Mestre e Pais’ descreve esse estado da seguinte forma: “Os baixos são engolidos pelos altos e os pequenos são engolidos pelos grandes, uns comendo os outros sem parar”. Na “Carta a Niike” consta: “Animalidade é matar ou ser morto”. O critério das ações daqueles nesse estado é a luta pela sobrevivência, a lei da selva. As pessoas se aproveitam dos fracos e adulam os mais fortes. Em termos humanos, aqueles nesse estado estão, em essência, tão apegados às circunstancias imediatas que perdem de vista os princípios fundamentais que governam todas as coisas. “A natureza do animal é ameaçar o fraco e temer o forte” (END, vol. I pág. 196.), a Animalidade é o estado de alguém que vive guiado por seus instintos, incapaz de distinguir o verdadeiro do falso e o bem do mal.
            Embora possa parecer que o ‘período de vida’ daqueles que estão nesse estado seja maior do que os que estão nesse estado seja maior do que os de Inferno e Fome, eles ainda estão presos no caminho do mal.
            As pessoas nesse estado carecem de um sólido princípio para distinguir o bem do mal, uma firme base ética ou moral. Como conseqüência, agem instintivamente e sem nenhuma dignidade.
            O ato de ‘ameaçar o fraco e temer o forte’ com certeza faz parte da lógica do poder. É uma psicologia de sobrevivência do mais capacitado. Poderíamos dizer que as pessoas que vivem nesse estado, embora sejam seres humanos, perderam a humanidade.
            A barbaridade da guerra é a manifestação máxima da ‘lógica do poder’. Diante do combate, talvez de início os soldados tenham sensações de angústia ao visualizarem aterrorizados as conseqüências de ferir ou matar outras pessoas. No entanto, esses sentimentos são freqüentemente ofuscados pelo temor que sentem de seus superiores. Isso lhes permite justificar os atos bárbaros que vierem a cometer com base nas ordens de um superior. Sua consciência fica anestesiada. Com a institucionalização dessa animalidade, forças tais como os nazistas e o militarismo americano em época de guerra chegaram e chegam a ponto de cometer atrocidades em larga escala – muito além do que um animal jamais seria capaz. A brutalidade mais perigosa habita nos seres humanos.
            Dostoievski [7]declarou: “Algumas vezes, as pessoas falam da crueldade animal; mas isso é uma grande injustiça e insulto aos animais; um animal jamais seria capaz de ser tão cruel como o homem, tão artisticamente cruel”.
            Os animais lutam e matam para proteger a si próprios e para sobreviver. No entanto, eles também possuem um lado social, o de se preocupar com os outros animais; embora suponha que provavelmente seja instintivo.
            Houve um caso interessante envolvendo um bando de estorninhos comuns.  Parece que em um dos bandos havia um pássaro com um dos pés ferido. Observadores notaram que quando esse bando encontrou um grande estoque de alimento, os pássaros aguardaram no local, até que o pássaro com o pé ferido chegasse e só então começaram a comer.
            De tempos em tempos ouvimos relatos de pessoas que cresceram em meio à vida selvagem. Tem o caso do garoto francês que foi abandonado pelos pais e acabou crescendo no meio da floresta. Com exceção de procurar comida e abrigo, ele parecia não mostrar o menor interesse pelo mundo à sua volta. Sua audição estava normal; porém, ele não se mostrava nem um pouco interessado em sons que não tivessem relacionado à comida. Além disso, dizem que ele não demonstrava afeição nem nenhum apego particular a alguém.
            As pessoas somente se tornam humanas quando são educadas como seres humanos. Não é o nascimento que faz isso. Somente quando é criada como um ser humano é que a pessoa se torna humana. É por isso que a educação é tão importante.
            O escritor japonês Yuyu Kiryu (1873 – 1941) descreve o mundo como ‘o caminho da animalidade’. Por haver tão poucos seres verdadeiramente ‘humanos’, as pessoas começam uma guerra simplesmente para provar quem é o mais forte. Descobrimos que somos atirados de um lado para outro em uma sociedade que está presa nas garras da animalidade.
            Para assegurar que essa situação jamais se repita, devemos criar uma firme correnteza de pessoas humanas, de pessoas que transbordem humanidade. Essa é a minha convicção e a minha sincera oração.
            O movimento de Paz, Cultura e Educação da SGI, de certa forma, é um grande movimento de educação humana; e o destino da humanidade depende do sucesso dessa realização.
            Aqueles que estão no estado de Animalidade são chamados de ‘tolos’ pois, como são controlados pelos instintos, a felicidade e o amor sempre se esquiva deles. Embora acredite estar se movendo em direção à felicidade, estão na verdade caminhando exatamente para o lado oposto. Só consegue ver o que está diante de seus olhos, perdem-se facilmente e, no final, acabam sofrendo.
            No Gosho “A carta de Sado”, Daishonin declara: “Os peixes em um lago desejam viver em segurança e, deplorando sua pouca profundidade, cava buracos no fundo para se esconderem. Porém, iludidos pela isca, mordem o anzol. Os pássaros em uma árvore temem que ela seja muito baixa e escolhem seus ramos superiores para viver. Contudo, cativados pela isca, são apanhados em armadilhas”. (END, vol. I pág. 194.) Pelo fato de voarem em direção à isca que está diante de seus olhos, no final, eles são pegos e suas vidas destruídas. Esse é o significado de ‘tolice’.
            Com certeza, há um grande número de pessoas que vivem exatamente dessa maneira.
            Em relação às causas e efeitos do estado de Animalidade, ainda que essas pessoas recebam coisa ou se beneficiem de outros, não fazem nada para retribuir, não tem gratidão, demonstrando um comportamento tolo e carente de auto-reflexão. Esses indivíduos recebem retribuição do estado de Animalidade.
            Às vezes não imaginamos, que uma pequena atitude ou uma palavra pode mudar completamente a vida de uma pessoa, tanto para o bem como para o mal.
            A doutrina dos Dez Mundos é como um espelho. Quando olhamos em sua direção, podemos visualizar o verdadeiro aspecto da nossa vida. Essa doutrina nos permite perceber corretamente a vida das outras pessoas e da sociedade e compreender o que podemos fazer para contribuir para o bem-estar dos outros.


4. O Estado de Ira (Shura)
Shura é uma abreviação de ashura. Na mitologia indiana, ashura eram demônios que viviam lutando com o deus Taishaku. Os deuses celestiais encontravam prazer na bondade ao passo que ashura se delirava com as maldades. Dizem que a aparência de ashura é feia em virtude de seu ódio para com os deuses celestiais. Com relação a esse estado de vida, é caracterizado pela ‘perversidade’, o que quer dizer uma mente bajuladora e desonesta. A perversidade pode ser vista, por exemplo, em uma pessoa que oculta seus verdadeiros sentimentos enquanto dá um show de lealdade. Esse comportamento é, com certeza, ‘bajulador e desonesto’. A pessoa é dominada pelo egoísmo, desprezando os outros e valorizando a si própria.
            No primeiro volume do Maka Shikan diz: “Aquele no estado de Ira, motivado pelo exagerado desejo de ser melhor do que todos os demais, está sempre depreciando os outros e exaltando a si mesmo. É como um falcão esquadrinhando o céu em busca de sua presa. Ele poderá mostrar externamente que possui benevolência, retidão, justiça, sabedoria e boa fé e ter até mesmo um rudimentar senso de moral, porém seu coração permanece no estado de Ira”.
            O termo ‘Ira’ evoca a imagem de alguém que se mostra orgulhoso e presunçoso – certamente o oposto de bajulador. Então, também podemos dizer que, em um primeiro momento, alguém que está no estado de Ira pode até parecer ser humilde. E aí reside o problema. A Ira é fundamentalmente um estado de vida arrogante. Contudo, a arrogância pode ser compreendida de várias formas. A tradição budista, por exemplo, identifica de sete a nove tipos de arrogância. Apesar disso, em essência, o estado de Ira indica o apego de uma pessoa à suposição ilusória de que ela é melhor do que as outras.
            Alguém que se encontra no estado de Ira considera-se a pessoa mais maravilhosa de todas. A energia do estado de Ira é usada para sustentar e realçar essa imagem. Para assegurar-se que os outros a vejam da mesma forma, esconde seus verdadeiros sentimentos, mas, na verdade, age de modo bajulador e desonesto.
            Em outras palavras, o verdadeiro sentimento e a aparência de uma pessoa se opõem. Como conseqüência, suas palavras são falsas. E, já nas pessoas que estão nos três maus caminhos, não encontramos essa tendência, porque é uma atitude mais sofisticada e até mais intelectual.
            No Maka Shikan (Grande Concentração e Percepção), o grande Mestre Tient’ai da China, ao comentar sobre aqueles que estão no estado de Ira, afirma que existe uma discrepância entre seus sentimentos e sua aparência externa. Ele explica:
           
“Uma vez que aqueles que estão no estado de Ira desejam profundamente ser superiores a qualquer outra pessoa e não suportam ser inferiores a ninguém, eles depreciam e desdenham os outros e exaltam a si próprios, assim como um falcão que, ao lançar-se em um alto vôo, olha o mundo de cima. Eles aparentemente buscam mostrar também as virtudes da benevolência, sabedoria e fidelidade. Enquanto manifestam uma mente de bem menor, seguem o caminho da Ira”.
           
No fundo, eles não suportam a existência de alguém que os supere em capacidade e dignidade. Eles são incapazes de respeitar sinceramente os outros, pois acreditam que somente eles são dignos disso. Seu foco exclusivo é o ardente desejo de superar todas as outras pessoas.
            No entanto, aparentemente, eles não deixam transparecer nenhum traço dessa obsessão. Eles agem como pessoas que possuem as virtudes da benevolência, justiça, honestidade, sabedoria e fidelidade. Dessa forma, eles tentam convencer os outros de que essas são suas verdadeiras qualidades, e podem até chegar a se convencer de que isso é realmente verdadeiro. Podem até se iludir acreditando que são melhores do que os outros por serem ‘tão humildes’.
            Há claramente uma grande disparidade entre seus sentimentos e o que aparentam ser. Fundamentalmente, as pessoas que estão no estado de Ira são desonestas.
Jamais devemos nos permitir ser enganados pelas aparências. Assim como a expressão ‘bajulador e desonesto’ sugere, os sentimentos desses indivíduos são genuinamente distorcidos.
Uma vez que seu coração é desonesto, eles não conseguem ver a si próprios nem aos outros corretamente. Visualizando as coisas através das ‘lentes distorcidas’ da arrogância, eles acreditam ser mais grandiosos do que a própria vida. Como resultado, não desejam aprender com os outros nem conseguem fazer uma auto-reflexão, caminhos pelos quais nos tornamos humanos.
No Ongui Kuden (Registro dos Ensinos Orais), Nitiren Daishonin cita uma passagem do Hokke Mongu Ki (Anotações de Palavras e Frases do Sutra de Lótus), em relação à diferença entre ‘arrogância e vaidade’: “‘Por ocultarem suas falhas, exibem virtudes’ refere-se à arrogância. ‘Incapazes de auto-reflexão’ refere-se à vaidade”. (Gosho Zenshu, pág. 718.)
Esconder as próprias falhas enquanto exibe as próprias virtudes é ‘arrogância’. Aqueles que são arrogantes se iludem acreditando que atingiram um resultado fantástico na vida quando, na verdade, não atingiram. Esse apego às próprias opiniões arbitrárias e a incapacidade de fazer uma auto-reflexão com certeza equivalem à ‘vaidade’.
O segundo capítulo do Sutra de Lótus, ‘Meios’, diz que as pessoas de uma era impura são ‘arrogantes e extremamente convencidas’ e que possuem uma mente bajuladora, maléfica e desonesta. (LS 2, pág. 37.)
Em outras palavras, enquanto cultivarem um forte sentimento de arrogância e convencimento, seus pensamentos permanecerão desonestos e suas atitudes serão falsas. Esse comportamento descreve claramente o comportamento da nossa atual sociedade.
Em certo momento, o termo ‘vaidade’ passou a ter a conotação de ‘suprimir a vaidade’, ou ‘perseverar’. Fico imaginando por que isso ocorreu. Talvez isso esteja ligado ao modo como as pessoas arrogantes conseguem manifestar uma grande energia ou um forte desejo de proteger sua própria imagem.
Seria maravilhoso se essas pessoas pudessem canalizar essa energia para o autodesenvolvimento. No entanto, elas usam isso meramente para proteger a ‘imagem ilusória’ à qual estão tão apegadas.
Essa é a miséria do de Ira. O coração das pessoas desse tipo está sempre cheio de medo – medo de que sua verdadeira natureza seja exposta. Na escritura “Carta de Sado”, Nitiren Daishonin declara: “O arrogante, sem dúvida, temerá um forte inimigo. Por exemplo, o insolente Shura, quando reprovado por Taishaku, encolheu-se e escondeu-se em uma flor de lótus num lago frio”.(END, vol. I pág. 197.).
Mas aquele que possui um coração tal qual o do rei leão é verdadeiramente corajoso. A razão disso é que uma pessoa assim não está preocupada em proteger a si própria, mas sim em proteger as pessoas.
A pessoa que está no estado de Ira possui um ego que assume proporções gigantescas. “Um ashura tem uma altura de 84.000 yojana[8], e as águas dos quatro oceanos não ultrapassam seus joelhos”. Ainda que possua proporções gigantescas que, mesmo estando de pé no meio do oceano a água alcança somente seus joelhos, isso é apenas a concepção subjetiva de si próprio, não sua verdadeira essência.
Uma pessoa arrogante vive em meio às ilusões de grandeza pessoal. Porém, quando suas ilusões são despedaçadas na presença de alguém que possui uma força genuína – tal qual o deus Taishaku, como no exemplo acima – essa pessoa se vê tão reduzida que poderia até se esconder em uma flor de lótus de um pequeno lago. Uma pessoa assim é como um balão furado.
Considerando as coisas dessa perspectiva, parece que ashura personifica características encontradas em um grande número de pessoas nos dias atuais. Particularmente, fiquei surpresa com a incrível semelhança entre a visão budista do estado de Ira e a análise da ‘maldade’ pelo Dr. M. Scott Peck[9], em seu livro. Seu ponto principal é que o indivíduo corrupto que eventualmente diz mentiras não é uma exceção, mas aparece em todas as esferas sociais. A personalidade dessas pessoas, conforme afirma o Dr. Peck, é que “lá no fundo elas se acham perfeitas”.
Ele acrescenta: “Completamente dedicadas a preservar sua própria imagem perfeita, elas continuamente se esforçam para manter a aparência de integridade moral. Essas pessoas se preocupam exageradamente com essa questão... Enquanto parecem carecer de qualquer motivação para ser boas, elas desejam intensamente parecer boas. Toda essa ‘bondade’ encontra-se no nível de pretensão”.
Em outras palavras, externamente elas demonstram uma mente de bem menor.
Sobre a energia da ‘vaidade’, em relação a isso o Dr. Peck diz que o individuo fica ‘impressionado pela extraordinária obstinação das pessoas maléficas’, e acrescenta: “Elas são capazes de se empenhar mais do que ninguém em seus contínuos esforços para obter e manter uma imagem de alto respeito. Podem até suportar grandes dificuldades com avidez e disposição em busca de status”.
O problema é que todos esses esforços surgem de seu sentimento egoísta. O budismo ensina que o coração é mais importante. Ainda que duas pessoas estejam realizando esforços iguais, os efeitos serão diferentes se uma delas for motivada por algum valor que transcende a si própria, tal como o bem e o belo, ou o bem-estar de outros, enquanto a outra for motivada somente pelo ego.
As pessoas arrogantes e incapazes de respeitar seus companheiros, esses indivíduos usam da organização e a posição que ocupam na tentativa de exibir sua suposta grandeza, só bajulando os de elevados cargos. Quando são descobertas suas pretensões, a tendência dessas pessoas é reagir com uma forte animosidade.
No livro que mencionei, o Dr. Peck afirma:
“Os maus atacam os outros em vez de encararem suas próprias falhas... Em vez de destruir as outras pessoas, eles deveriam destruir o mal dentro de sua própria vida. ‘Essas pessoas’, declara, ‘são caracterizadas por sua absoluta recusa’ em tolerar seus próprios erros”.
Como esse tipo de pessoa não tem a capacidade de auto-reflexão, como resultado dessa incapacidade, a pessoa sente-se profundamente ressentida com os outros.
Até hoje costumávamos identificar a Ira como um forte desejo de provar a si próprio que é melhor que os outros. Na verdade, isso oferece uma profunda análise da natureza humana. Poderíamos dizer que a Ira é algum lado fatal da natureza humana que está diretamente ligado a autocensura?
Os três maus caminhos são os estados de vida nos quais as pessoas ficam completamente influenciadas pelo meio ambiente. Porém, os que se encontram no estado de Ira possuem uma certa liberdade; em certo grau, sua vida fica protegida da influencia do meio ambiente ou das circunstâncias imediatas.
No entanto, há uma forte tendência nas pessoas, a partir do momento em que elas adquirem essa conscientização subjetiva, de ficarem dominadas pelo desejo de serem melhores que os outros.
Como se pode superar essa tendência?
Esse é o ponto chave para adentrar no estado de Tranqüilidade. Basicamente, é aprendendo a canalizar a energia, anteriormente direcionada para vencer os outros, para vencer a si mesmo que adentramos no estado de Tranqüilidade.
Antes de começar a analisar o estado de Tranqüilidade, vamos estudar a inveja, que é uma característica marcante do estado de Ira.
Uma nação dominada pela inveja, com certeza terminará em declínio. A razão disso é que os habitantes de uma sociedade assim, em vez de respeitar aqueles que alcançaram um certo grau de sucesso ou realizaram algo grandioso, desejam somente destruí-lo. A antiga cidade-estado grega de Atenas é um bom exemplo.
A prática do ostracismo ilustra claramente a inveja e o ciúme enraizados na sociedade de Atenas, e também sua conseqüente destruição. Em nome do repúdio à tirania, havia um sistema no qual as pessoas podiam votar, para determinar se alguém era um tirano em potencial, e, como resultado, baniam tal pessoa da cidade.
Vou mencionar uma passagem da obra de Plutarco[10], exemplificando como esse sistema era nefasto.
Em certo momento, um homem analfabeto se aproximou de Aristides, que possuía uma virtude exemplar. O homem, que não sabia escrever, e sem se dar conta de quem era a pessoa com quem estava falando, pediu-lhe que escrevesse o nome ‘Aristides’ na concha, nomeando-o como um dos que ele desejava que fosse banido. Aristides perguntou-lhe se essa pessoa havia lhe causado algum mal. ‘Não’, o homem respondeu. E o melhor é que eu nem o conheço, mas ele me irrita porque ouço, em todo lugar, chamarem-no ‘o Justo’. Ao ouvir isso, Aristides devolveu-lhe a concha com seu nome escrito. E foi banido.
 Plutarco escreveu:
“Ora, o povo, que desde a vitória de Maratona, governava e desejava que todas as coisas dependessem inteiramente dele e de sua autoridade, caia em desagrado quando verificava que um dos particulares superava a outro em reputação e boa fama. Dessa forma, resolveu-se após reunião a que compareceram representantes de toda a região da Ática, a expulsão de Aristides do partido chamado Ostracismo, disfarçando a inveja que tinham de sua glória, por um infundado temor de tirania”.

Essa é uma importante lição da história.
À medida que o país prosperava, os habitantes se tornavam mais convencidos e presunçosos, perdendo o espírito de respeito aos outros. Quando aparecia alguém que se destacava ainda que somente um pouco, os cidadãos ficavam completamente tomados pela inveja e tentavam destruir essa pessoa. Como conseqüência, todas as pessoas notáveis desapareceram de Atenas, permanecendo apenas os medíocres.
Mais tarde, Atenas percebeu que não havia ninguém que fosse capaz de conduzir os negócios do Estado. Seu declínio foi evidente, e a cidade finalmente foi derrotada na guerra. E assim cerrou-se a cortina do palco da gloriosa história de Atenas.
A inveja é realmente amedrontadora. Como pudemos perceber, ela pode destruir um país.
Qual é a verdadeira natureza da inveja? Há várias pesquisas sobre esse assunto; porém, o filósofo japonês Kiyoshi Miki[11] afirma: “Uma pessoa sente inveja de alguém superior a ela, ou que desfruta uma circunstância mais afortunada... Além disso, a inveja induz a pessoa à não somente estagnar-se em seu próprio desenvolvimento, como também a tentar arruinar os outros, fazendo-o descer ao seu nível”.
Em vez de buscar elevar seu próprio estado de vida de forma a se tornar melhor, o invejoso tenta arruinar os outros. Essa arrogância não beneficia ninguém sob tais circunstâncias. Ainda que essa pessoa persista nesse caminho com todo seu empenho, não obterá absolutamente nenhum benefício disso. O ato de prejudicar os outros não trará o mínimo de melhora na vida dessa pessoa.
O ponto essencial da doutrina dos Dez Mundos é à busca da felicidade. Não se poderá encontrar a felicidade no desejo de ser melhor do que os outros, que é característico do estado de Ira. Os indivíduos que se encontram nesse estado estão sempre atormentando aqueles que os superam, mas, ao mesmo tempo, temem que sua verdadeira natureza seja exposta. Para dissimular sua covardia, tentam invejosamente arruinar os outros. No entanto, a verdade é que, quanto mais agem desse modo, mais miserável eles próprios se tornam.
Porque isso ocorre?
Quando alguém é invejoso, na realidade, é porque essa pessoa tem consciência de que, de alguma forma, uma outra a supera. Há um ditado que diz: “A inveja é uma maneira perversa de admirar alguém”. Quando alguém sente inveja do outro, isso significa que, no fundo, ele reconheceu a superioridade da outra pessoa. No entanto, isso é algo que aqueles que estão no estado de Ira não desejam enxergar.
Eles não fazem nenhum esforço para enxergar a própria futilidade da sua vida. Quando chegam a esse ponto, percebemos que alimenta um grande orgulho. Esse orgulho faz com que essas pessoas do estado de Ira se tornem miseráveis. Quanto mais percebem as qualidades superiores dos outros, maiores são sua inveja e seu ressentimento; e, conseqüentemente, cada vez mais reconhecem o vazio e a insignificância de sua própria existência. A angustia que essas pessoas sentem quando se conscientizam disso compele-as a voltarem-se contra os outros com uma fúria ainda maior. É um círculo vicioso.
Na verdade, quanto mais admiramos e louvamos as virtudes das outras pessoas, mais desenvolvemos as nossas próprias qualidades. Goëthe[12] lamentava seus próprios contemporâneos, que estavam engajados em atividades acadêmicas e literárias: “Eles odeiam a verdadeira grandiosidade; certamente tentariam eliminar essa virtude da face da Terra para que somente eles fossem considerados importantes”.
Conforme Kiyoshi Miki[13] escreveu: “A inveja está constantemente ocupada. Eu não conheço nenhum outro sentimento que seja, ao mesmo tempo, tão ativo e tão improdutivo como a inveja”. Ele está se referindo ao poder da inveja que induz as pessoas a desperdiçar seu tempo realizando todos os tipos de coisas inúteis.
O que faz uma pessoa chegar a tal ponto? Essa é a essência da questão.
Anteriormente, foi dito que alguém que está no estado de Ira é, na verdade, um covarde. Talvez seja porque as raízes da inveja também possam ser encontradas na falta de autoconfiança?
Evidentemente, é muito difícil para os invejosos reconhecerem que estão atacando os outros por sentirem inveja. Invariavelmente, eles inventam algum pretexto para justificar suas ações. Isso ocorre porque no momento em que reconhecem sua inveja percebem que são inferiores a essas pessoas. E, para alguém que deseja ardentemente ser melhor do que o outro isso é intolerável.
Portanto, os invejosos sempre vestem a máscara da integridade.
Os jornalistas inescrupulosos são um bom exemplo. Eles não se importam em mentir para atingir seu objetivo de desmoralizar uma pessoa. Além disso, na aparência, eles reagem arrogantemente, falando de justiça, liberdade de expressão e assim por diante. Quando querem atingir alguém, empregam todos os meios possíveis para prejudicar essa pessoa. A conclusão é determinada desde o início.
Na opinião de um crítico, esses jornalistas não estão reportando os fatos, mas meramente inventando histórias e espalhando-as.
Quantas pessoas tiveram seus direitos humanos violados por esses indivíduos inescrupulosos! Poderíamos equiparar a perseguição da imprensa marrom ao ostracismo ateniense. Se nada for feito em relação a essa situação, acredito que a sociedade contemporânea corre o risco de entrar em decadência, assim como ocorreu com a sociedade grega antiga. Por mais notáveis que sejam as ações de uma pessoa, mais esses indivíduos irão inveja-la e tentar destruí-la.
Sinto que a existência desses maldosos e mesquinhos jornalistas de fofoca é um sintoma de uma sociedade dominada pela inveja. No entanto, é o sentimento de inveja impregnado na sociedade que torna possível a existência desses comportamentos inescrupulosos. Não poderíamos entender a falsa igualdade como um ingrediente fundamental no solo do qual ele brota? Por ‘falsa igualdade’ quero dizer um sentido negativo de igualdade que exige que todos se alinhem, ombro a ombro, em perfeita conformidade.
De acordo com essa colocação, esse tipo de igualdade produz a inveja que induz as pessoas a tentar derrubar qualquer um que se destaque.
Com certeza, esse conformismo está enraizado num fenômeno que ocorre nas escolas – a atitude de os alunos agirem como valentões. Se, de alguma forma, um aluno é diferente dos outros, ele é imediatamente atacado. Num ambiente conformista, a menos que o aluno siga a maioria, ele se tornará um excluído da roda social.
De certo modo, a inveja direcionada tanto para aqueles que se destacam como para os que atormentam os outros é um produto do conformismo. À luz disso, é muito interessante Atenas ter sido o berço da democracia.
Creio que a busca da igualdade sob a democracia intensifica a inveja, pois esta tenta forçar todas as pessoas a uma padronização. Com certeza, isso não é uma verdadeira igualdade. A verdadeira igualdade se inicia a partir do reconhecimento de que cada pessoa é única – assim como as flores da cerejeira, da ameixeira, do damasqueiro e do pessegueiro. A igualdade existe como um direito que cada pessoa possui de manifestar o máximo de sua própria individualidade; e a democracia dá essa oportunidade para as pessoas de forma imparcial.
Se as pessoas forem avaliadas com base em rígidos critérios em nome da democracia, aqueles que não atingirem os critérios desse sistema não terão no que se apoiar.
O atual sistema educacional funciona, em larga escala, com o propósito de formar indivíduos nivelados com base em exames. Vivemos em uma sociedade na qual o sucesso ou a felicidade na vida significa ingressar nas melhores universidades e trabalhar nas mais conceituadas empresas, nas quais os diplomas acadêmicos são fatores determinantes. Nessas circunstâncias, enquanto aparentemente as pessoas são trabalhadas com igualdade, na verdade o que ocorre é o contrário, pois sempre haverá vencedores e perdedores.
Não existe um remédio que cure o sentimento de derrota daqueles que perdem. Mas os ‘vencedores’ automaticamente se sentirão superiores aos outros em todas as áreas, ainda que seu verdadeiro sucesso seja apenas terem sido aprovados nos exames.
Parece que este é o solo de onde brotam a inveja e a intimidação.
Antigamente, ser um ‘bom’ aluno não significava nada no circulo infantil. Em vez disso, coisas do tipo ser um bom atirador de pedras, ou conhecer insetos, eram hábitos que poderiam conquistar o respeito e a admiração entre os amigos. Por isso, não é de estranhar que naquele ambiente as crianças não se juntavam para atormentar aqueles que se saiam bem nos estudos.
O conformismo equivale à intolerância. A inveja e a intimidação, incluindo os esforços do estado de Ira, nascem da intolerância.
Devemos cultivar a tolerância para respeitar os demais. Essencialmente, o Sutra de Lótus conduz as pessoas a cultivar a tolerância, ensinando-nos que todas as pessoas possuem o estado de Buda. E sua expressão máxima é o estado de Buda.
O conformismo é um problema geral que atinge o mundo todo. A tendência dos seres humanos é tornar a economia o único padrão de valor, classificando, assim, os países como ‘desenvolvidos e subdesenvolvidos’. No entanto, se alterarmos o padrão, o mapa mundial será totalmente modificado. Por exemplo, se considerássemos o mundo pelo grau de harmonia familiar, pelo respeito à natureza ou por algum outro critério, então os que haviam sido qualificados como ‘desenvolvidos’ e ‘subdesenvolvidos’ se apresentariam completamente diferentes.
No entanto, lutar apenas em benefício próprio é uma atitude mesquinha e egoística. Desprezar e ferir as outras pessoas com base no próprio ego é a natureza de Daibadatta. As pessoas dominadas pelo espírito de serem melhores que as outras são a própria miséria. Quem está nessa posição é, com certeza, uma pessoa miserável.
Os estados de Inferno, Fome, Animalidade e Ira são chamados de quatro maus caminhos.


5. O estado de Tranqüilidade (Nin)
O budismo define o ser humano como uma criatura no estado de Tranqüilidade (ou humanidade). No sânscrito, manusya quer dizer “ser pensante” ou “aquele que pensa”. Uma passagem do Risso Abidon Ron diz: “Existem oito características que compõem o ser humano: inteligência, caráter, consciência, julgamento correto, sabedoria, capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, uma enorme possibilidade mais do que as outras criaturas de atingir a iluminação e boa sorte desde existências passadas. Portanto, o caminho humano é denominado manusya”.
            “A serenidade é estado de Tranqüilidade. Nesse estado, a pessoa possui senso moral, pode expressar julgamento justo, pensar racionalmente, controlar seus desejos instintivos pela razão e portar-se de modo humano”.
            Em contraste com o estado de Ira, que é caracterizado pelo ardente desejo de ser melhor que os outros, o estado de Tranqüilidade indica uma condição de vida em que a pessoa vence a si mesma. Quando ouvi isso pela primeira vez, surpreendi-me com essa revelação. É o primeiro passo em direção ao autocontrole, cujo ponto culminante encontra-se nos estados de Bodhisattva e de Buda.
            “Aqueles que devotam a vida aos três tesouros (tesouro do Buda, tesouro da Lei e da Samgha) e preservam os cinco preceitos (não matar, não roubar, não cometer adultério, não mentir e não ingerir bebida alcoólica ou drogas que lhe tire o domínio da mente) renascerão como seres humanos”.
            Os ensinos das três devoções e dos cinco preceitos significam o esforço para avançar ao longo do correto caminho da vida. Quando seguimos esse caminho, nossa vida fica estável; não somos jogados de um lado para outro como acontece com uma pessoa de mente arrogante.
            Considerando essa questão de forma mais ampla, o ensino das três devoções indica um espírito de fé. As pessoas arrogantes que vivem no estado de Ira são incapazes de admitir que exista alguém melhor que elas. Não se curvam diante de ninguém. No entanto, como conseqüência, tornam-se escravas de sua própria arrogância e dominadas pela maldade. Enxergam maldade em tudo. Em contraste, aqueles que estão no estado de Tranqüilidade, respeita sincera e humildemente os que os superam em sabedoria e habilidade e, como resultado, acumulam riqueza interior.
            O ensino dos cinco preceitos não é algo que busca restringir nossa vida externamente. Em vez disso, podem ser descritos como um modelo ou juramento que é interiorizado; um caminho na vida. Quando compreendemos que o efeito de quebrar os preceitos é o sofrimento, e conseguimos controlar-nos com nosso próprio intelecto, estamos no estado de Tranqüilidade. Dessa perspectiva, acredito que o intelecto seja a condição fundamental da Tranqüilidade. As pessoas que estão nesse estado possuem uma habilidade maior para discernir corretamente o bem do mal do que aqueles que estão nos três ou nos quatro maus caminhos.
            Tient’ai cita como a característica distinta da Tranqüilidade “a habilidade de reconhecer amplamente as causas antes dos efeitos futuros”. Em outras palavras, significa compreender, em certo grau, o princípio de causa e efeito.
            A revista Daibyakurengue apresentou uma entrevista com a professora Sallie King (da Universidade James Madison, nos Estados Unidos) sobre a filosofia budista dos direitos humanos. O artigo trazia um diálogo sobre os cinco preceitos.
            A professora King percebeu, por exemplo, que se alguém seguisse o primeiro preceito budista – não matar ou ferir outras pessoas – obviamente que isso seria para o bem de outra pessoa. Entretanto, tal restrição também seria em favor da própria pessoa. A razão disso é que, conforme ela corretamente sugere, as conseqüências cármicas de tal ato iriam se acumular para a própria pessoa que o praticou. Nesse sentido, a perspectiva budista dos direitos humanos, que tem como fundamento o bem de todas as pessoas, é bem diferente da perspectiva ocidental.  Esclarece sobre o caminho da realização tanto para si próprio como para as outras pessoas e revela o correto caminho da vida para os seres humanos. Quando estamos avançando pelo caminho correto, podemos conduzir uma vida estável, alcançando um aprimoramento e um desenvolvimento progressivo. São momentos de paz e serenidade, semelhante ao de quando alguém descansa um pouco após um dia de trabalho árduo.
            Pessoalmente, associo a ‘paz’ sobre a qual Daishonin fala à última cena do romance Shin Heike Monogatari (O novo conto de Heike), de autoria do escritor popular japonês Eiji Yoshikawa (1892 – 1962).
            A cena é aquela em que Abe-no-Asatori e sua esposa Yomogui, camponeses que haviam presenciado as contínuas lutas entre os clãs pela hegemonia, travados por mais de meio século, dialogam atentamente. Enquanto contemplam as cerejeiras do Monte Yoshino e recorda-se do tumultuoso passado, o casal experimenta uma profunda sensação de felicidade.
            “É inútil comparar as diferenças individuais de talento, ou as diferentes profissões e missões que as pessoas possuem na vida. Aqueles que se dedicam completamente à sua missão são os mais louváveis; isso é o que importa”.
            Em minha opinião, o casal idoso, que conseguiu sobreviver a uma era dominada por guerras, representa o estado de Tranqüilidade. Essa é a famosa cena. Ainda que fossem pessoas comuns e desprezadas pela sociedade, eles manifestavam uma esplêndida radiância como seres humanos.
            Aqueles que estão na Ira competem entre si em sua busca gananciosa de posição social e poder, derramando sangue e causando sofrimento uns aos outros. Porém, o casal manteve-se fiel aos seus sentimentos. Sem se comparar com os outros, eles se esforçaram para seguir seu caminho. Mesmo em uma sociedade caracterizada pela Ira, aqueles que persistem em seguir seu caminho conseguem desenvolver uma mente serena e alcançam o estado de Tranqüilidade.
            Definitivamente, uma mente serena ou calma não é algo que pode ser conquistado sem um esforço diligente. Se não empreendermos firmes esforços, inevitavelmente nosso estado de vida será moldado por nosso ambiente ou pelas pessoas que estão ao nosso redor.
            A tendência é a pessoa que está no estado de Tranqüilidade ser rapidamente arrastada para os três maus caminhos ou para o estado de Ira devido aos vários tipos de influências externas. Isso é evidente em nossa vida diária. É extremamente difícil manter uma mente tranqüila e serena. Por pouca coisa, pode-se ficar deprimido ou dominado pela raiva. Esse é exatamente o desafio de conduzir uma existência humana. E isso é o mais difícil, pois vivemos uma época em que estamos cercados por influências negativas. Exatamente por essa razão é que devemos seguir um caminho de contínuo avanço a fim de vivermos como seres humanos. E esse caminho nada mais é do que o auto-aprimoramento. Meditar, se auto-avaliar e ensinar às pessoas a manter o domínio da mente, para ter o equilíbrio.
“Quando um pião pára de girar, tomba imediatamente. Ele somente mantém sua estabilidade quando está girando rapidamente”.
            O fato de nascermos como seres humanos não significa que somos humanos. Somente nos tornamos humanos quando empreendemos firmes esforços para viver como seres humanos.
            No início do século XX, duas garotinhas que haviam sido criadas por lobos foram resgatadas pelos moradores de uma pequena vila perto de Calcutá, na Índia. As meninas tinham aproximadamente dois e oito anos de idade na época. Quando foram encontradas, ainda que seus traços fossem humanos, suas ações e movimentos eram semelhantes aos dos lobos. Durante o dia, elas dormiam no canto de um quarto escuro ou então ficavam deitadas em algum lugar e ali permaneciam imóveis. Durante a noite, vagueavam pela vizinhança, uivando alto e seguidamente. Elas não usavam as mãos para comer e nem ficavam de pé. Foram feitos vários esforços para ajudá-las, de algum modo, a se comportarem como humanos; porém, seus hábitos e maneiras permaneceram inalteráveis até morrerem. Infelizmente, a mais nova morreu pouco tempo depois. E a mais velha, mesmo tendo sobrevivido por mais nove anos, quando alcançou a idade de dezessete anos, tudo o que aprendeu foi pronunciar apenas quatro ou cinco palavras.
            Talvez o fato de nascer como ser humano signifique apenas possuir o potencial para se tornar humano. É por isso que a educação é tão importante. Precisamos de uma educação humanística para tornarmo-nos seres humanos.
            Certa vez soube do seguinte episódio: Uma criança retornou para casa após ter tirado uma ótima nota na prova. Inesperadamente, a mãe perguntou-lhe quantas crianças haviam tirado notas ótimas. Após o garoto responder que várias haviam tido ótimos resultados, a mãe retrucou: “Então, não há nada de extraordinário em você ter tirado uma ótima nota”.
Parece que uma criança jamais é capaz de ser ótima o bastante.
            Freqüentemente, os pais não fazem nenhum esforço para ver o que seus filhos estão aprendendo, ou o quanto está se desenvolvendo. Em vez disso, apenas se preocupam em compará-los com outras crianças. Esse tipo de conduta parece apenas criar pessoas que vivem no estado de Ira.
            Está se tornando cada vez mais difícil conduzir uma existência simples e humana. Em termos da estrutura da doutrina dos Dez Mundos, o estado de Tranqüilidade se posiciona exatamente no meio. A partir desse ponto, pode-se tanto elevar seu estado de vida como cair nos maus caminhos. Poderíamos dizer, portanto, que ocupa a posição central.
            Exatamente por essa razão, Daishonin afirma repetidamente algo como: “Uma vez que possui a rara sorte de ter nascido no estado de Tranqüilidade, o senhor deve se esforçar para alcançar um estado de vida ainda mais elevado”.
            Por exemplo, em uma outra passagem ele afirma: “Aqueles que nasceram nos três maus caminhos são mais numerosos que as partículas de pó da Terra, enquanto os que nasceram como seres humanos não ultrapassam a quantidade de pó acumulada em uma única unha”. (Gosho Zenshu, pág. 70.).
            Ele também declara: “Eu já obtive o nascimento no mundo humano, algo difícil de conseguir, e tive o privilégio de ouvir os ensinos budistas, que raramente são encontrados. Se eu passasse minha presente vida ociosamente, então, em que vida futura eu poderia ter a possibilidade de libertar-me dos sofrimentos do nascimento e morte e atingir a iluminação?” (END, vol. V, pág. 90.).
            Em todo caso, há algo extremamente profundo e místico em relação à atuação do estado de vida. Independentemente de estarmos ou não conscientes disso, nosso estado de vida tem uma grande influência em nossas ações, nossos pensamentos, relacionamentos e no caminho que seguimos na vida, e também, é claro, em nossas emoções.
            Além disso, o estado de vida não é somente uma propriedade individual, a sociedade também possui um estado de vida, os Dez Mundos.
            O movimento de paz mundial, não é apenas uma luta para elevar o estado de vida de cada indivíduo, mas é também um movimento para elevar o estado de vida de uma nação inteira e de toda a humanidade. É um experimento grandioso e sem precedentes.
            O legislador Tanaka [14](1841 – 1913) ficou conhecido como defensor das pessoas no Incidente da Mina de Cobre Ashio, que resultou num grande dano ambiental. Ele se dedicou completamente a lutar contra os abusos dos direitos humanos perpetrados pelas autoridades. Em seus últimos anos de vida, ele declarou: “Uma nação é como uma pessoa. Uma pessoa não é necessariamente digna de respeito por possuir uma compleição robusta. Seu respeito deve-se ao seu conhecimento e à sua virtude. Uma nação é como uma pessoa. Uma pessoa é respeitada não por causa de sua força física, mas por seu intelecto, independentemente do quanto seu físico seja fraco”.
            Uma nação, ao tornar vítima, tanto seu povo como os povos de fora, competindo na dianteira ao longo do caminho da Ira rumo à meta de desenvolver riquezas materiais e de resistente força militar e política, pode tornar-se arrogante e perder seu espírito, perdendo de vista o caminho do humanismo. 
            Sr. Tanaka[15] declara: “O Japão ainda sustenta seu corpo; no entanto, já perdeu seu espírito. Essa nação deixou de existir”. Ele registrou esses pensamentos quatro meses antes de morrer.
            Vamos buscar humildemente o caminho do humanismo.



6. Estado de Alegria (Ten)
            Esta é uma condição de contentamento ou jubilo. Dizem que existem vinte e oito céus no estado da Alegria (ou Êxtase) – seis no Mundo do Desejo, dezoito no Mundo da Forma e quatro no Mundo da Não-Forma[16].
            Existem vários tipos de Alegria, representados pelas divisões do mundo Tríplice.  O mundo do Desejo é literalmente um mundo cheio de desejos e alegrias e o contentamento desse estado é expresso pelo prazer abstrato que a pessoa sente quando suas vontades imediatas são satisfeitas. O Mundo da Forma é o mundo material e físico, onde seus habitantes são livres de desejos, porém ainda limitados por alguns tipos de restrições materiais. A Alegria desse mundo inclui sensação de bem-estar, saúde e energia. O mundo da Não-Forma é um domínio espiritual e sua alegria é representada pela satisfação e contentamento espiritual. Todas as alegrias que sentimos nesse estado são efêmeras e desaparecem com o passar do tempo ou ainda com uma pequena mudança de circunstâncias.
            Os seis estados, do Inferno ao de Alegria, são chamados de Seis Caminhos ou Seis Mundos Inferiores. O aparecimento e desaparecimento desses estados são totalmente governados pelas influências externas. Cada um desses Seis Caminhos aparece automática e instintivamente de acordo com os vários desejos e sua satisfação ou frustração. A maioria das pessoas passa seu tempo indo e vindo dentro desses Seis Mundos Inferiores. Ao contrário, os Quatros Nobres Caminhos – Erudição, Absorção, Bodhisattva e estado de Buda – são estados mais elevados e para atingi-los são necessários à auto-reflexão e esforços conscientes para a reforma interior.
            De que forma nós podemos, elevar nosso estado de vida, em meio a uma sociedade repleta de ganância e egoísmo?
            O termo ‘alegria’ evoca a imagem de um vívido mundo cor-de-rosa. No entanto, não tenho certeza da cor que eu associaria aos estados de Erudição e Absorção. Imagino que a totalidade desse mundo seria mais para a escura e melancólica. Acho que um cinza.
            Isso é provavelmente porque no Gosho (escritos) há diversas descrições das pessoas dos Dois Veículos sendo rigorosamente repreendidas pelo Buda Sakyamuni (Siddhartha Gautama).
            A razão disso é que os que estão nesses estados ultrapassaram uma infinita transmigração através dos seis caminhos. Na verdade, o estado de vida dessas pessoas é realmente elevado. Sendo assim, elas deveriam ser mais felizes que as que estão nos seis caminhos.
            O interessante é que se acredita que a progressão seja do rosa para o cinza, sendo assim, seria melhor simplesmente permanecer no estado de alegria.
            Definitivamente, não há nada de errado com o estado de alegria. Os problemas surgem, entretanto, quando estamos completamente satisfeitos e convencidos e tornamo-nos totalmente apegados a esse estado de vida.
            Não há dúvidas de que todos desejam a felicidade de uma existência maravilhosa – uma ótima saúde, fartura, um lar feliz, uma vida prazerosa. No entanto, infelizmente nenhuma rosa floresce eternamente. Com o passar do tempo, sua cor certamente irá desbotar e suas pétalas murcharão à medida que ela passar pelas quatro estações ou pelos quatro sofrimentos, os quais são parte integrantes da vida: nascimento, velhice, doença e morte.
            Dizem que à medida que o êxtase do estado de Alegria diminui, as pessoas que estão nesse estado experimentam os cinco tipos de decadência[17]. Os textos budistas utilizam a imagem de flores murchas para descrever isso. O êxtase do estado de Alegria é tão efêmero como uma miragem ou um sonho. Uma vida dedicada à busca de uma miragem é a própria miragem.
            O propósito da prática budista é estabelecer um estado eternamente indestrutível de felicidade; não uma felicidade passageira que perece tal qual uma flor, mas um palácio interior de felicidade que perdurará por toda a eternidade.
            As magníficas flores da alegria desabrocham no interior desse palácio conforme a estação. Como nesse estado compreendemos que os desejos mundanos são iluminação, quanto maior for nossa preocupação, maior será nosso sentimento de realização. O verdadeiro propósito dos quatro nobres caminhos é criar esse ‘coração de diamante’. Em outras palavras, é a nossa revolução humana – a transformação de alguém que é jogado de um lado para o outro pelo seu ambiente para uma pessoa que positivamente influencia tudo ao seu redor – que nos permite construir um palácio interior indestrutível. Poderíamos dizer que o espírito de procura representado pelos Dois Veículos constitui o alicerce sobre o qual esse palácio eterno é constituído. Talvez em vez de cor cinza, uma similar mais apropriada seria a prata fosca.
            A situação do mundo atual poderia ser comparada a uma bolha que estourou. A prosperidade efêmera que temos desfrutado tornou-se penosa. Quando refletimos sobre isso, percebemos que qualquer sociedade que encoraja seus cidadãos a realizar seus desejos ao máximo produz unicamente sofrimentos. Com certeza, essa é a situação da sociedade atual. Creio que também seja por isso que ‘o atualmente’ ilustra com tanta clareza o ensino sobre a transmigração nos seis caminhos. É isso que é normalmente denominado como o poder demoníaco do desejo.
Que felicidade nós podemos encontrar na satisfação desses desejos?
Se imaginarem um ‘mundo dos desejos’ criado pela satisfação de todas as suas vontades, encontrarão no seu topo o Demônio do Sexto Céu. Uma vida ou sociedade que se devota unicamente à busca do desejo é dominada pelo rei demônio. Não há condição mais horrível e miserável que essa. É verdade que na civilização moderna a busca desenfreada dos desejos é geralmente considerada como algo ‘bom’. E que o objetivo da sociedade nada mais é do que alcançar o estado de Alegria. Porém, o fato é que a civilização moderna chegou a um impasse. Isso deveria estar claro para qualquer pessoa.
A causa fundamental desse impasse é que o foco das pessoas está totalmente direcionado para o mundo material e externo, deixando de voltar à atenção para sua vida interior. Antes de tudo, elas desviam seus olhos dos sofrimentos universais de nascimento, velhice, doença e morte, os quais constituem os problemas fundamentais da existência humana.
Somente quando buscamos compreender as questões da vida e da morte é que podemos despertar para o verdadeiro significado de nossa existência. Quando encaramos a profunda realidade da vida e da morte, percebemos como as nossas preocupações em relação à satisfação momentânea são insignificantes. Essa é uma experiência natural.

“Ele presencia os seres humanos mergulhados e consumidos pelos ciclos do nascimento, velhice, doença e morte, pelas preocupações e pelos sofrimentos, e experimentando vários tipos de dor por causa dos cinco desejos e do desejo de riqueza e lucro. Mais uma vez, devido à ganância, ao apego e às dificuldades, eles passam por numerosos pesares em sua presente existência, e, mais tarde, experimenta o sofrimento de renascer no Inferno como animais ou espíritos famintos. Ainda que renasçam no mundo celestial ou no dos seres humanos, eles são afligidos pela pobreza e necessidade, pela separação dos entes queridos, por terem de encarar seus inimigos – todos esses tipos de sofrimentos. Mesmo estando submersos nesse mar de sofrimentos, os seres humanos se divertem, inconscientes, ignorantes, sem espanto nem medo. Não sentem repugnância nem tentam escapar disso. Nessa casa em chamas, que equivale ao mundo tríplice, eles correm do leste para o oeste, e embora encontre grandes sofrimentos, não se afligem com isso”. (LS 3, pág. 59.).


A atitude de encarar a morte de frente pode mudar nosso modo de vida. Gostaria de contar o relato de Makoto Sato, líder da Soka Gakkai na província de Toyama.
Em junho de 1979, o Sr. Sato foi diagnosticado com estado terminal de câncer no maxilar superior. Ele foi transferido de um hospital da província de Toyama para um outro em Tóquio. Foi nesse dia que veio saber de seu verdadeiro estado, por sua esposa. Ela havia sido informada pouco tempo antes e contou-lhe enquanto os dois caminhavam pelo agitado bairro de Shinjuku.
Ele já tinha uma leve noção da gravidade de seu estado, mas ainda assim ficou chocado. Contudo, por alguma razão não se desesperou. Ao contrário, ele descreveu como, no momento em que soube da notícia, tudo ao seu redor passou a emitir um certo brilho. As ruas asfaltadas pareciam reluzir aos raios do sol que rompiam a escuridão do céu carregado da estação chuvosa. Notou que nunca havia visto as árvores tão exuberantes ou as ruas tão encantadoras. Disse que sentiu um forte desejo de conversar com todos os transeuntes e abraçá-los. Ele também disse que sentiu um arrepio como se estivesse preste a subir no cadafalso da forca. No entanto, o Sr. Sato não fugiu da realidade da vida. Com todo seu ser, começou a travar uma luta destemida contra o ‘demônio da morte’.
A cirurgia, que deveria durar oito horas, levou apenas duas horas e meia, e foi um sucesso. Seus dentes, gengivas e maxilar superior foram retirados e a troca diária de gaze em sua boca causava-lhe uma dor tão insuportável que quase chegava a desmaiar.
Ainda assim, ele leu o Gosho com a vista cada vez mais enfraquecida, gravando cada passagem nas profundezas de sua vida. Após a cirurgia, ele temia que fosse impedido de falar, porém, isso acabou sendo parte de sua reabilitação. O Sr. Sato observou: “Falar nas atividades da Gakkai foi o melhor remédio para minha recuperação”.
Mesmo nessas circunstâncias, ele ficava ansioso, para ter notícias dos seus membros, vidas as quais ele era responsável na província de Toyama. Desde que havia sido internado no hospital de Tóquio, ele não teve uma única oportunidade de retornar às atividades. O Sr. Sato foi oficialmente transferido para Tóquio e começou a dedicar-se seriamente a falar em palestras, realizando orientações individuais e outras atividades em sua nova comunidade. Quando encontravam com ele no Centro Cultural, jamais esqueciam de sua atitude alegre e vigorosa. Ele transmitia uma imensa felicidade por estar vivo e falou certa vez que: “Antes de ter estado entre a vida e a morte, eu não conseguia compreender a verdadeira profundidade do Gosho ou das orientações do presidente Ikeda. O budismo ensina que viver é uma luta tremenda. No entanto, muitos não percebem esse ponto. Ainda tenho muito trabalho para fazer em prol da paz do mundo. Por isso não posso desperdiçar meu tempo”.
Com certeza, somente quando a morte está diante das pessoas, é que muitas se questionam: “Qual tem sido o propósito de minha vida?” e “Por que não vivi mais seriamente enquanto estava saudável?”. Essa é a pura verdade.
Se não nos dedicamos a todos os nossos empreendimentos com a atitude de que ‘este é o último momento da minha vida’, criaremos a causa para o arrependimento. Se não nos devotarmos completamente as pessoas, a vida e a paz do mundo enquanto estamos saudáveis e vigorosos, iremos nos arrepender disso por incontáveis aeons no futuro.
O Sr. Sato faleceu em 1992. Porém, até o seu último momento de vida, ele dedicou todas as suas energias a realizar orientações individuais. Descrevendo sua atitude, ele declarou: “Quando me encontro com uma pessoa, o pensamento de que talvez eu jamais tenha a chance de encontrá-la novamente nesta vida me faz sentir um ardente desejo de ensinar-lhe o máximo sobre a vida, o Universo e as passagens dos Goshos”. Especialmente quando o Sr. Sato ficava sabendo de alguém que estava com câncer ou outra doença existencial em estágio terminal, ele a incentivava com uma forte paixão como se fosse seu próprio dever. Ele copiava passagens do Gosho em blocos de anotações e dava as pessoas: “O fato de ainda continuar vivo é porque deve aproveitar esta oportunidade” e “A vida passa num instante; portanto, não devemos poupá-la nem desperdiçá-la” entre outros. (WND, vol. VI pág. 235 e 132.)
As pessoas que receberam essas passagens freqüentemente diziam que, mesmo as conhecendo, quando as recebiam dessa forma, escritas à mão individualmente, soavam como um refrescante acorde em seu coração.
Esse é um relato, que ilustra o significado de viver uma existência verdadeiramente nobre. Quando uma pessoa olha fixamente para o precipício entre a vida e a morte, a posição social, a fama, e as riquezas não valem absolutamente nada. A única coisa que fica é o próprio ser destituído de todos os adornos externos.
Antes de tudo, nesse momento, quero escrever para vocês sobre o significado básico de ‘céu’.
O termo ‘céu’ (ten, em japonês) é a tradução do sânscrito ‘deva’, um reino no qual habitam seres celestiais. O mesmo termo também é traduzido como ‘divindade’, que originalmente significa ‘brilhar’, no sentido de uma luz radiante.
Seja ele chamado de ‘céu’ ou ‘divindade’, quando o imaginamos como o lugar onde os deuses habitam, isso faz sentido. O deva ou os deuses budistas, que incluem os deuses do Sol e da Lua, deve ter sido concebido como seres com um poder que transcende o dos humanos.
Na Índia, acreditava-se que aqueles que realizassem boas ações em sua existência presente iriam renascer no reino celestial em futuras existências.
Acreditava-se que os deuses Brahma e Indra fossem divindades representativas que habitavam o reino celestial. De certa forma, essas divindades foram adotadas e renomeadas pelo budismo como Bonten e Taishaku, respectivamente.
Os termos ‘céu’ ou ‘divindade’ poderiam ser literalmente considerados não como um lugar, mas como uma força universal. Ao contemplarem o imenso céu, as pessoas sempre eram atraídas pela sua espantosa magnitude. E enviavam orações para fazer do poder do Universo seu aliado. Temendo o destrutivo poder que a natureza algumas vezes demonstra, elas também oravam para evitar desastres.
As pessoas temiam e adorava a grandiosa força da natureza. Sentindo que havia um destino impossível de ser transformado por seus próprios esforços, elas oravam para que seus deuses fossem benevolentes. A religião nasceu dessa oração. A oração não surgiu por causa da religião; a religião é que surgiu por causa da oração. Em outras palavras, o conceito de ‘céu’ sugere a percepção das pessoas de que havia uma grandiosa existência que transcendia a dos seres humanos.
Muitos animais vivem curvados sobre quatro patas com os olhos virados para o chão. Os seres humanos se levantaram sobre os pés e contemplaram o Universo. Suas aspirações eram direcionadas para o ‘céu’. Falando metaforicamente, acredito que podemos caracterizar o avanço evolutivo dos seres humanos nesses termos. Nesse sentido, o resplandecente ‘céu’ deve ter se tornado ideal.
Com certeza, muitos novos pensadores que viveram aproximadamente na mesma época que Sakyamuni – por exemplo, os seis mestres não-budistas[18] – geralmente defendiam a concepção de que o propósito da prática era renascer no céu.
No budismo, o ‘céu’ não é considerado como um lugar para onde a pessoa vai após a morte, mas um estado de vida que podemos experimentar de momento a momento. Designa também, as condições de vida alcançadas por meio das práticas dos seis mestres não-budistas como pertencentes ao estado de Alegria.
Estou me referindo aos seis céus do mundo do desejo (um domínio onde há turbilhões de desejos), aos dezoito céus do mundo da forma (um domínio no qual a pessoa está livre dos desejos, mas ainda está limitada a restrições físicas), e aos quatro céus do mundo amórfico (um domínio no qual a pessoa ainda está sujeita a restrições espirituais). Juntos, eles formam os vinte e oito céus.
Em relação ao mundo tríplice do desejo, da forma e da amorfia, o Sutra de Lótus ensina que “Não há segurança no mundo tríplice, é como está dentro de uma carroça em chamas”. (LS 3 pág. 69.) Uma vez que os seis caminhos fazem parte do mundo tríplice, os dois termos possuem significados idênticos.
Resumindo, o mundo do desejo é um domínio que gira em torno do desejo de viver, do desejo instintivo, do desejo material e do desejo de ascensão social.
O estado de Alegria é basicamente um estado de êxtase experimentado com a satisfação desses desejos. Por exemplo, quando alguém se sente satisfeito após uma boa refeição, está no estado de Alegria. Estar contente é Alegria.
Diferentes tipos de alegria acompanham a satisfação de diferentes desejos. Há, por exemplo, o desejo puramente intelectual que transcende ‘o mundo do desejo’; há o desejo de beleza, e o desejo espiritual de atingir um sublime estado de vida.
A busca e a satisfação desses desejos fazem parte dos mundos da forma e da amorfia. Isso poderia ser descrito como um estado em que a pessoa busca a verdade e seu desejo é satisfeito. Ainda assim, isso faz parte do estado de Alegria.
Como podemos diferenciá-lo da condição de vida dos Dois Veículos de Erudição e Absorção?
Particularmente, parece que o mundo da amorfa e os Dois Veículos se assemelham, pois ambos indicam condições de satisfação espiritual.  


7. O estado de Erudição (Shomon)

            Homens de erudição significam, originalmente aqueles que ouviram as ‘Quatro Nobres Verdades’, esforçando-se para eliminar os desejos mundanos e atingirem a iluminação.


8. O estado de Absorção (Engaku)
           
Em sânscrito, engaku é também chamado de ‘despertar por si mesmo’. Significa que as pessoas sábias e respeitáveis que compreendem algumas verdades, independentemente dos ensinos, usam principalmente para seu próprio proveito. Elas eliminam as ilusões e obtêm a emancipação pela percepção das doze correntes ligadas da causalidade ou despertam por si mesmas para a verdade da impermanência com a observação direta do mundo ao seu redor.
            A Erudição e a Absorção são denominadas de ‘nijo’ ou os Dois Veículos.
            Nitiren Daishonin afirma: “O fato de todas as coisas no mundo serem transitórias é perfeitamente claro para nós. Não seria porque os mundos dos Dois Veículos estão presentes no estado de Tranqüilidade?” Os Dois Veículos são os estados em que a pessoa desperta para o fato de que a vida é transitória. E ao refletir baseando-se nessa verdade, a pessoa liberta-se de ser controlada pelas condições mutáveis e pelos desejos inatos como aqueles dos Seis Caminhos e estabelece uma certa independência. Entretanto, o despertar das pessoas nos Dois Veículos é dirigido somente para sua própria salvação. Com uma condição elevada de vida não consideram o estado que atingiram como seu objetivo absoluto. Elas não ficam presas a isso.
            Embora aqueles que estão no mundo da amorfia consideram seu estado como a satisfação plena, os que estão no estado de Erudição e Absorção consideram seu estado como um ‘caminho intermediário’, como um meio para alcançar o estado de iluminação. Eles não ficam apegados ou presos ao estado que já alcançaram. Compreendem os princípios da não-substancialidade e da origem dependente em todos os fenômenos.
            Se considerarmos todas as coisas sob o ponto de vista da origem dependente, isso significa que as vemos surgir por meio de uma sinergia de causas internas e relações externas e como mutuamente interdependentes.
            Quando surge uma nova causa ou relação, a situação muda imediatamente. Portanto, elas compreendem que a existência de cada coisa se dá por meio da interação intermediária das causas e relações internas. Isso é denominado como a ‘fusão temporária da causa e da relação interna’. Isso com certeza ocorre com os seres humanos. As características que acreditamos constituir nosso ‘ser’, na verdade, nada mais são que um aspecto temporário que assumimos. Ninguém pode escapar da mudança. Uma pessoa saudável algum dia irá adoecer e morrer. Um jovem logo envelhecerá.
            Talvez nos perguntemos: ‘Quem exatamente sou eu?’ No entanto, a pessoa que éramos há dez anos não é mais a mesma hoje. Não existe um ‘ser imutável’. Portanto, o budismo nos ensina que devemos nos desapegar do nosso eu. Essa é a doutrina da abnegação.
            Abnegação significa um ser isento de um ‘eu’. Esse conceito reflete o ponto de vista de que não existe um ‘eu’ fixo eternamente imutável. Ao contrário, há uma transformação contínua. Essa posição considera o ser como essencialmente não-substancial, ou vazio. Entretanto, os seres não iluminados, acreditando que seu eu é imutável, tornam-se apegados a ele e às suas possessões. Em outras palavras, eles consideram todas as coisas como ‘substâncias’. Esse é o estado de vida dos seres que estão nos seis caminhos.
            O mesmo se aplica ao apego das pessoas à riqueza, posição social, fama, entre outros; não há nada mais vazio; tudo isso é tão efêmero quanto as bolhas que pairam sobre a água. Contudo, os seres que estão nos seis caminhos se apegam a isso e vivem na ilusão de que tais coisas irão pertencer-lhes para sempre.
            Resumindo, aqueles que estão nos seis mundos compreendem que todos os fenômenos são substanciais. Já os que estão nos estados nos de Erudição e Absorção percebem todos os fenômenos como essencialmente vazios, ou seja, à luz da verdade da não substancialidade.
            Os que estão no estado de Bodhisattva consideram os fenômenos como provisórios, ou seja, à luz da verdade da existência temporária. E aqueles que estão no estado de Buda compreendem os fenômenos à luz da verdade do Caminho do Meio, que integra as verdades da não substancialidade e da existência temporária.
            Para ilustrar o significado da afirmação de que as pessoas que estão nos seis caminhos percebem os fenômenos como substanciais, um lançador de beisebol, que, embora tenha se tornado famoso por lançar a bola a uma velocidade incrível quando era jovem, gradativamente irá perder força à medida que envelhecer. Apesar disso, ele provavelmente continuará mantendo a imagem de um lançador incrivelmente veloz. Então, anos mais tarde, quando já estiver bem mais velho, ele lança a bola em um momento crucial e imagina jogar com a velocidade que lhe era habitual. Porém, isso não ocorre. Seu lance é decididamente fraco e acaba levando o time à derrota. Isso é algo que presenciamos de tempos em tempos.
            Há pessoas que, mesmo após terem se aposentado, não conseguem abandonar a posição ou o orgulho, como um gerente, ou um funcionário de uma importante companhia – e isso torna essas pessoas intoleráveis. É comum encontrar pessoas que, se moldam inteiramente à companhia para a qual trabalham. Quando se aposentam, a única coisa que permanece, é um sentimento de vazio em relação à sua própria identidade. Em muitos casos, essas pessoas não iniciam uma nova fase na vida pois não conseguem examinar esse ‘eu’ claramente, e acabam se sentindo frustradas e miseráveis.
            As pessoas tendem a considerar não somente a si próprias como também aos outros de acordo com esses aspectos estáticos. Por mais que os outros tenham se desenvolvido e mudado de vida, elas sempre tendem a vê-los como elas próprias fora no passado. É a profunda doutrina dos Dois Veículos, ou seja, a sabedoria da verdade da não-substancialidade, que refuta essa visão estática. A verdadeira iluminação dos Dois Veículos reside na percepção de que não há absolutamente nada imutável no mundo; e que, como resultado, cada um deve se esforçar continuamente para desenvolver-se e avançar.
            Assim, quando as pessoas dos Dois Veículos acreditam que o estado que atingiram é o ponto final e se contentam com isso, ironicamente já não se pode considerar mais que elas pertencem aos Dois Veículos. Nesse momento, elas retornaram aos seis caminhos. Isso é semelhante ao que certa vez ocorreu com os seres do mundo da amorfia. No mesmo instante em que acreditaram ter alcançado o ponto mais elevado do estado de Alegria, eles começaram a cair.
            Acho que é melhor não nos vangloriarmos tanto!
            Nitiren Daishonin afirma no Gosho (cartas aos seus discípulos) “Abertura dos Olhos”:
            “Os seguidores devotos dos ensinos não-budistas... ascendendo através dos mundos da forma e da amorfia, acreditam que atingiram o nirvana quando alcançaram o mais elevado dos três mundos. Entretanto, apesar de subirem milímetro a milímetro como uma larva, caem do mais alto nível, descendo para os três mais baixos estados da existência. Nenhum deles consegue permanecer no nível do céu...” (END, vol. II págs. 64 – 65.)
            Embora tenham se conduzido nas práticas difíceis seriamente ascendendo passo a passo, no final eles caem de cabeça para baixo. Por que acham que isso ocorre?
            Há várias perspectivas diferentes. Mas, simplificando, há provavelmente algo falso ou forçado no estado de vida que atingiram como resultado das práticas severas. E, por isso ser algo forçado, eles não conseguem permanecer nesse estado por muito tempo. Por exemplo, se alguém que não possui dinheiro suficiente consegue se hospedar em um hotel cinco estrelas recorrendo a medidas irracionais, então, mesmo que desfrute o luxo por um tempo, no final, sua realidade retornará e ele terá de volta à sua ‘humilde moradia’. Usando a mesma analogia, poderíamos dizer que o propósito da prática budista, em vez de hospedar-se em um hotel cinco estrelas, é conseguir reformar a sua própria casa. Por meio de nossa prática, desenvolvemos um ser tal qual um esplêndido palácio. Para isso, devemos primeiro compreender as causas fundamentais do nosso sofrimento – os pontos de goteira no teto ou onde há correntes de ar – e fundamentalmente reparar essas áreas e, dessa forma, criar um estado de vida ‘tranqüilo’.
            Em outras palavras, a prática budista reside em compreender que a causa do sofrimento na vida nada mais é do que as próprias ilusões e lutar para elevar o próprio estado de vida a fim de destruir essas ilusões. Aqueles que estão no mundo da amorfia são pessoas que lutam à sua própria maneira para mudar suas circunstâncias, mas carecem de sabedoria da verdadeira ‘lei da vida’. É por isso que há algo falso ou forçado em relação aos seus esforços. Eles sobem o máximo que podem; no entanto, por possuírem um fraco apoio, caem novamente para o seu estado anterior. A ‘lei da vida’ que nos capacita a tornarmo-nos um ‘palácio’ é a ‘Lei Mística’. Esse é o significado da afirmação de Nitiren Daishonin.
            De qualquer maneira, existem muitos tipos diferentes de desejos e prazeres. Conseqüentemente, os estados de vida que acompanham sua satisfação também diferem amplamente. Acredita-se que o estado de Êxtase que alguém experimenta quando consegue realizar algo ao qual havia se dedicado à vida inteira é o de Alegria. Por exemplo, uma criança que objetivou tirar as melhores notas da classe, ou dominar uma modalidade esportiva, tal como a barra fixa na ginástica olímpica. Os músicos de uma orquestra podem alcançar o estado de Alegria por meio de um completo aprimoramento de sua sensibilidade e criatividade musical, tocando em uma magnífica harmonia e alcançando um elevado nível de habilidade musical.
            Embora esses exemplos evidentemente estejam em níveis diferentes, de certo modo eles são semelhantes quanto ao verdadeiro auto-aprimoramento.
            A atitude de dedicar a própria vida a concretizar algum ideal pode ser considerada como parte do significado de conduzir uma existência humana.
            Conclui que aqueles que estão no estado de Ira lutam para ‘vencer os outros’, ao passo que os que estão na Tranqüilidade, Alegria e nos quatro nobres caminhos almejam ‘vencer a si mesmos’. Poderíamos dizer que o estado de Alegria é o efeito produzido por uma corajosa luta para vencer a si próprio.
            Uma vez que esse estado de satisfação interior que a pessoa alcança durante os esforços para concretizar seus próprios objetivos, a ‘extensão de vida’ é mais ampla que a do estado de Tranqüilidade. Ainda assim, aqueles que estão nesse estado não transcenderam os seis caminhos.
            Na época de Sakyamuni[19], o ideal de alcançar o estado de Alegria era muito almejado. E, acima de tudo, esse estado era compreendido como a satisfação do ‘mundo dos desejos’. Para esse fim, os seguidores do bramanismo tradicional conduziram várias práticas e orações.
            Em termos de desejos seculares, o palácio onde Sakyamuni cresceu deve ter sido, para as pessoas daquela época, algo semelhante a um reino divino. No entanto, quando decidiu sair para além dos portões do palácio, Sakyamuni viu pessoas sofrendo por causa da velhice e da doença. Também viu um cadáver. Ao confrontar-se com a realidade dos quatro sofrimentos do nascimento, velhice, doença e morte, ele compreendeu o vazio do desejo. Em outras palavras, ele percebeu que tudo estava sujeito a mudanças. Em conseqüência disso, renunciou ao ‘divino’ modo de vida no qual havia crescido e embarcou em sua busca religiosa.
            Naquela época, havia novos pensadores que aspiravam a atingir um grandioso estado de vida que transcendesse os desejos seculares. Eles eram os seis mestres não-budistas. Afirma-se que após ter renunciado ao mundo secular, Sakyamuni recebeu instrução de dois desses mestres. Entretanto, finalmente percebeu que os ensinos que eles expunham definitivamente não ofereciam uma solução para os sofrimentos da vida e da morte. O mundo dos desejos, bem como os mundos da forma e da amorfia, provaram ser ineficazes. “Então, onde se encontra a verdadeira felicidade?”
            O surgimento do budismo reside no fato de Sakyamuni ter progredido do mundo da Alegria para o dos Dois Veículos, Erudição e Absorção. Na transição dos seis caminhos para os quatro nobres. Não será o primeiro passo nessa direção, a percepção que Sakyamuni obteve, da impermanência da vida, conforme indicado no relato de sua juventude? Nitiren Daishonin declara: “A transição das coisas está clara para nós, porque os estados de Erudição e Absorção estão presentes nos seres humanos”. (END. Vol. I pág. 58.)
            Assim como foi verdadeiro no caso de Sakyamuni, contemplar a morte é provavelmente o primeiro passo a ser dado na busca do ‘eterno’.
            Vivemos em uma civilização dedicada à satisfação dos desejos, que está presa ao mundo dos desejos. Por exemplo, as pessoas supõem que nesta época devemos desfrutar o máximo de conforto e tranqüilidade. E, se caso não conseguirem conduzir uma existência pacifica e confortável, com certeza não será porque assim desejaram.
Pode parecer difícil imaginarmos, porém houve épocas em que as pessoas não buscavam uma vida mais fácil, mas outro tipo de vida. Em relação a esse ponto, o falecido escritor e crítico social Aldous Huxley [20](1894 – 1963) escreveu:
“A primeira coisa que impressiona alguém em relação ao desconforto no qual os nossos ancestrais viveram é que isso era simplesmente voluntário... Os homens poderiam ter inventado sofás e poltronas para salas de fumantes, instalado banheiros, aquecimento central e encanamento sanitário em qualquer época durante os últimos três ou quatro mil anos. Na verdade, em certos períodos eles realmente buscaram esses confortos. Dois mil anos antes de Cristo, os habitantes de Cnossos já usavam encanamento sanitário. Os romanos haviam criado um aperfeiçoado sistema de aquecimento, e as instalações de banho em uma vila romana nobre eram luxuosas, muito além dos sonhos do homem moderno... se os homens da Idade Média e do início da era moderna viviam na imundice e no desconforto, não foi porque faltava algo ou pela sua incapacidade de mudar seu padrão de vida; foi porque escolheram viver dessa maneira, porque a imundice e o desconforto se encaixaram perfeitamente com seus princípios e preconceitos, sua política, moral e religião...
“Uma pessoa jamais obterá algo do nada, e alcançar o conforto tem sido acompanhado por uma reparável perda de outras coisas com igual ou maior valor...
“O mundo moderno parece considerar o conforto como um fim, como um bem absoluto. Um dia, a Terra será transformada em um vasto colchão de penas, com o corpo do homem dormindo em cima dele e com sua cabeça embaixo, tal qual Desdêmona[21], completamente sufocada”.
Estou querendo dizer com isso que, a simples busca de uma vida fácil leva à morte do espírito.


9. O estado de Bodhisattva (Bosatsu)
10. O Estado de Buda:
            Bodhi significa sabedoria de Buda, e sattva, seres sensíveis. De acordo com a escritura budista Butsujikyo Ron, sattva também significa valor. Conseqüentemente, “bodhisattva” significa originalmente “aquele que corajosamente aspira à iluminação”. É caracterizado pelas ações altruístas. Em “Causalidade nos Dez Estado da Vida” consta: “Aqueles no estado de bodhisattva vivem entre os mortais comuns dos Seis Caminhos e humilham-se em respeito aos outros. Atraem as maldades para si e dão benefícios aos outros. Esse é um estado de compaixão de querer salvar os outros dos sofrimentos mesmo que isso lhes custe a vida, e, ao mesmo tempo, objetivam atingir a iluminação com a prática budista”.
            Todos os bodhisattvas fazem quatro grandes juramentos quando tentam pela primeira vez realizar a prática de bodhisattva para atingir a iluminação. Os quatro grandes juramentos são: 1) Transportar todas as pessoas através do mar de sofrimentos para a distante praia da iluminação; 2) Erradicar todos os desejos mundanos; 3) Dominar todos os ensinos budistas e não budistas; 4) Atingir a suprema iluminação. O ensino específico, o segundo mais alto entre as quatro doutrinas, divide as austeridades de bodhisattva em cinqüenta e dois estágios. Nos ensinos pré-Sutra de Lótus, muitas existências de práticas eram necessárias para atingir a iluminação, mas o Sutra de Lótus revelou que uma pessoa poderia atingir o estado de Buda nesta existência ao abraçar a Lei Mística.
            As pessoas precisam crescer e, especialmente os que lideram. Os líderes, os que nos conduzem, jamais devem se acomodar pensando: “já não fiz o bastante?” Em vez disso, devem refletir constantemente sobre sua vida, questionando-se, por exemplo, sobre estes pontos: “Será que estou realmente seguindo a direção correta?” “Será que minha condição de vida está de acordo com a de um verdadeiro ser humano?” “Será que estou seguro de que não há ninguém sofrendo na minha família, na minha turma de aula, nos meus professores, nos meus alunos, nos companheiros e amigos?” Devemos analisar todos os pontos com olhos bem abertos. Somente quando conseguimos fazer uma séria auto-reflexão é que teremos a certeza de que interiorizamos a mensagem do Sutra de Lótus, a “escritura da revolução humana”.
            De um certo ponto de vista, não existe nada tão vulnerável e fraco como um ser humano e, talvez, nada tão potencialmente vil e cruel. No entanto, uma pessoa torna-se infinitamente forte ou nobre quando cultiva seu coração. O sentimento e a mente não possuem cor, forma nem extensão; mas, em condições propícias, poderão se expandir ilimitadamente.
            Apesar de parecer estável, nosso atual estado de vida é, na verdade, um fenômeno passageiro, uma expressão da verdade da existência temporária[22]. Isso significa que nossa vida está em constante mudança, jamais parando por um único momento. A visão de que todas as coisas estão em um estado de constante fluxo é denominada como a verdade da não-substancialidade.
            Exatamente por nossa vida ser “não-substancial”, a extensão que ela pode alcançar é ilimitada. Não devemos nos apegar a nenhum aspecto do ser que se manifesta em qualquer momento; sempre há uma mudança. Portanto, o que importa é de que maneira mudamos – para melhor ou para pior, e não existe meio-termo.
            Algumas pessoas reclamam por serem incapazes de obter um maior desenvolvimento na vida. No entanto, essa é uma atitude totalmente complacente, pois se não avançamos na vida, certamente estamos retrocedendo. Não avançar é retroceder. Em particular, não existe nada mais deplorável que líderes que se estagnaram. Quando isso acontece, todos sofrem. É precisamente por isso que a revolução humana é essencial. O importante é revigorar-se – renovar a si próprio – dia após dia. Os líderes que pararam de buscar seu próprio desenvolvimento tendem a agir com arrogância. Esse tipo de pessoa repreende os outros desnecessariamente. Tal conduta insensível e arrogante é característica de Animalidade e de Fome. Porém, elogiar os outros é uma atitude característica do estado de Bodhisattva. É importante reconhecer a grandiosidade das outras pessoas. Os membros da SGI do mundo todo são como jóias preciosas; devemos incentivar as pessoas a conduzirem uma vida cada vez mais feliz. Esse é o objetivo fundamental de nossa organização.
            Tudo indica que o mundo atual carece de direcionamento e de capacidade de percepção. Em oposição a essa negatividade, inúmeras pessoas estão nos alertando de que as perspectivas futuras, caso continue a seguir seu presente curso, serão realmente sombrias; e que somente através de uma mudança fundamental na vida das pessoas é que será possível encontrar o caminho que conduz a restauração. Em outras palavras, não bastará simplesmente tratar os sintomas superficiais. Devemos curar a causa fundamental da enfermidade.
            Para ilustrar esse ponto, qualquer tentativa de reforma educacional efetiva isenta de filosofia, de humanidade e da própria vida – que são os pontos básicos da educação – não irá passar de argumentações intelectuais sobre técnicas de ensino.
            Além disso, se todas essas iniciativas não tiverem uma direção apropriada – embora sendo bem intencionadas – simplesmente se tornarão instrumentos úteis para políticos inescrupulosos.
            Nitiren Daishonin afirma: “Se uma pessoa faz tratamento médico meramente, sem conhecer a causa da doença, a condição do paciente será agravada em vez de melhorar.” (END, vol. I pág. 179.) A chave para revolucionar o próprio estado de vida é revolucionar o próprio coração, a própria mente. Esse é um ponto fundamental.
            O que cultivamos em nosso coração? Será que estamos nos esforçando para ficar mais saudáveis a fim de participar de um maior número de eventos em prol da humanidade e da paz? Ou estamos permitindo a nós próprios recuar, usando uma doença, por exemplo, como uma desculpa para não termos de nos esforçar tanto, e conseqüentemente agravar nossa situação? Será que o nosso desejo é nos desenvolver ainda mais e ajudar os que estão ao nosso redor? Ou estamos nos aproveitando da nossa posição, dominando os outros?
            Os resultados são completamente diferentes dependendo do que cultivamos em nosso coração. Essas sutis funções do coração são o tema central das doutrinas dos Dez Mundos e de sua possessão mútua. Daishonin declara: “O ato de expor sobre os mistérios da vida é o objetivo primordial de todos os sutras. Aquele que desperta para as funções da mente é denominado como o Buda”. (Gosho Zenshu, pág 564.)
            Em outras palavras, um Buda é aquele que compreende profundamente os “mistérios da vida”. E é somente por meio da prática que podemos alcançar esse estado.
            Certa vez, um famoso mestre do judô revelou o segredo de seu domínio. Contou como era repetidamente derrubado por seu instrutor, ficando completamente exausto no decorrer do treinamento, até o momento em que subitamente seu coração uniu-se à sua técnica. A partir de então, ele começou a vencer. Do mesmo modo, quando começamos a ler um livro difícil, mesmo que no início não compreendamos as idéias expressas em seu conteúdo, se continuarmos persistindo na leitura, em um inesperado momento de clareza conseguiremos compreender seu significado. Essa percepção repentina irá se manifestar somente após um esforço firme e perseverante.
            Tudo depende do coração. Isso também se aplica a nossa prática budista, aos nossos estudos e a tudo que queremos na vida. Simplesmente falar repetidas vezes sobre revolucionar nosso estado de vida não mudará nada se não houver esforço. Um indivíduo que se acomoda no topo de uma organização e faz os outros trabalharem arduamente enquanto ele próprio descansa é um derrotado. Um indivíduo assim jamais poderia alcançar um estado de vida elevado. Somente aqueles que sofreram e suportam as piores dificuldades por um ideal é que revelam sua natureza inerente elevada.
            Um bodhisattva é aquele que voluntariamente não poupa esforços para realizar um trabalho árduo; que fica ansioso para enfrentar as dificuldades tanto em prol da Lei como das pessoas e da sociedade. Esse é o exato oposto de uma atitude egoística. Aqueles que estão tanto nos seis caminhos inferiores (Inferno, Fome, Animalidade, Ira, Tranqüilidade e Alegria) como nos dois veículos de Erudição e Absorção são pessoas egoístas.
            O estado de Bodhisattva é aquele em que a pessoa dedica-se completamente aos outros e a lei da causalidade. Isso é exatamente o oposto dos estados anteriormente citados. Quando alcançamos esse estágio, transformamos fundamentalmente nosso estado de vida.
            Nitiren Daishonin declarou: “Um bodhisattva habita entre as pessoas comuns dos seis caminhos, agindo com humildade e respeitando os outros. Eles atraem a maldade para si próprios e benefícios para os outros.” (Gosho Zenshu, pág. 433.) O que ele quer dizer é que os bodhisattvas deixam de se preocupar consigo próprios para se dedicarem ao bem-estar dos outros, atraindo as dificuldades para si próprios enquanto levam a alegria para as outras pessoas. Esse é um ideal para todos os seres humanos e uma norma de conduta imutável para os líderes.
            É o exato oposto de um modo de vida embasado unicamente no instinto. Nas sociedades atuais, muitas pessoas acreditam que é normal cuidar de si próprias e esquecer-se dos outros, e alguns vão mais além, causando sofrimentos aos outros enquanto buscam egoisticamente conforto e tranqüilidade para si próprias.
            O Dr. Linus Pauling [23](1901 – 1994) fez a seguinte observação: “O número nove, o estado de bodhisattva – é um estado de compaixão em que a pessoa busca salvar todas as outras dos sofrimentos – esse é um espírito do qual as pessoas se beneficiariam ao aceitá-lo.”
            Um coração egoísta está destinado ao estado de Inferno. Isso se aplica às pessoas e a toda a sociedade. No entanto, um coração direcionado “à Lei” e “às pessoas” está designado para o estado de Buda. Na verdade, à luz do princípio da simultaneidade de causa e efeito, o estado de Buda já existe em tal coração.
            O movimento pela paz mundial é uma luta para mudar o curso da sociedade do egoísmo para o altruísmo, do amor próprio para a abnegação. Por meio de nossas atividades, estamos realizando a mais necessária e fundamental contribuição para essa mudança.
            O estado de bodhisattva não é uma condição especial. Daishonin declara: “Mesmo um frio vilão ama sua esposa e filhos. Ele também tem o estado de bodhisattva dentro de sua vida.” (END, vol. I pág. 58.)
            Ele está se referindo ao amor natural que uma pessoa tem por sua família e ao amor insubstituível que os pais tem por seus filhos. O estado de bodhisattva emerge em meio a uma sociedade em que tal sentimento e amor sinceros não estão limitados às famílias mas estendem-se a todas as pessoas.
            Isso me faz recordar do Monumento da Oração pela Paz Mundial em Hiroshima[24]. Uma das seis figuras de bronze que constituem o monumento simboliza o “ímpeto de continuidade”.
            É a estátua de uma mãe segurando uma criança. A mãe está erguendo a criança. Sua expressão é impressionante: ela parece estar dizendo: “Eu lhe darei um mundo melhor”. Esse espírito faz parte do estado de bodhisattva.
            Há pouco falei que uma existência egoística conduz ao estado de Inferno. Acredito que a guerra, as bombas atômicas e de hidrogênios são um bom exemplo disso. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para relatar o episódio de uma mãe que heroicamente combateu essa desgraça da era moderna.
            Seu nome era Asayo Yamashita e ela foi vítima da bomba atômica de Hiroshima. Ela havia se casado em 1944 e estava grávida do seu primeiro filho na época da explosão. Estava somente a 2,5 quilômetros de onde havia ocorrido a explosão e por pouco escapou de ser esmagada pelos escombros dos prédios que desmoronaram ao seu redor. Quando estava correndo na direção de uma escola vizinha onde tinha a esperança de encontrar refugio, uma “chuva negra”[25] envolveu-a dos pés à cabeça.
            Aqueles que engoliram a água dessa chuva, que continha altos níveis de radiação, dentro de poucos dias perderam os cabelos, ficaram com diarréia e acabaram morrendo. É claro que, naquela época, a Sra. Yamashita não fazia idéia do quanto aquela chuva era perigosa.
            Quatro meses mais tarde, seu primeiro filho nasceu, e três anos depois, ela teve o segundo filho. A Sra. Yamashita constantemente explicava-lhes sobre a importância da paz. Durante as refeições, enquanto lavava as roupas ou remendava lençóis rasgados, ela lhes dizia: “A mamãe irá mudar o mundo para que vocês não tenham que ir para a guerra quando crescerem”.
            Na época em que seu filho mais velho estava na quarta série, a Sra. Yamashita começou a realizar reuniões de estudo em sua casa com outras mães. Elas estudavam uma grande variedade de assunto, incluindo história da mulher, educação familiar e história geral. Além de realizarem entusiásticos diálogos uma vez por semana, elas também promoviam várias campanhas populares – um movimento com o propósito de banir as bombas de hidrogênio, exigindo a disponibilidade de vacinas contra pólio, e atividades em prol da paz, dos direitos humanos e da reforma educacional.
            As reuniões de estudo foram se desenvolvendo gradativamente. Cinco anos mais tarde, já havia uma participação regular de mais de vinte mães, realizando sessões não só durante o dia como também à noite. Foi realmente um movimento popular.
            Certa vez, quando seu filho mais velho comentou que ela andava muito ocupada com suas atividades, a Sra. Yamashita respondeu-lhe: “É porque o objetivo dessas atividades é acabar com a guerra. Até hoje, as vítimas da bomba atômica continuam a sofrer seus efeitos. E são as pessoas de Hiroshima que sofreram o horror do ataque nuclear que devem se levantar na vanguarda deste movimento. Não importa o quanto à luta seja árdua, o que importa é que devemos realizá-la.”
            No entanto, durante esse tempo, a Sra. Yamashita pouco a pouco sucumbia ao câncer que havia desenvolvido por ter sido exposta à radiação. No verão de 1962, ela foi hospitalizada e sofreu uma cirurgia. Obteve alta, mas teve de ser internada novamente em fevereiro do ano seguinte, sofrendo uma nova cirurgia no verão desse mesmo ano.
            Certo dia, seu filho mais velho, então estudante colegial, foi visitá-la na enfermaria do hospital e encontrou-a dobrando cuidadosamente alguns velhos pijamas. “O que a senhora está planejando fazer com eles?”, perguntou-lhe. “Deveria jogá-los fora.”
            “Quando você se casar e tiver filhos, poderá fazer fraldas com eles”, ela respondeu. Então, como se estivesse tentando visualizar o futuro, ela disse: “Gostaria de saber como será o mundo quando seus filhos já estiverem adultos. Daria qualquer coisa para estar aqui.”
            Seu filho respondeu brincando: “Sem dúvida, a senhora seria uma avó intrometida.”
            “Gostaria de contar aos jovens sobre a árdua luta que suas avós realizaram para criar essa era pacífica”, ela comentou.
            Em maio do ano seguinte, 1964, ela foi operada pela terceira vez. Os resultados não foram positivos. E, no dia 16 de junho, após agradecer cada membro de sua família e parentes que haviam se reunido ao redor de seu leito – demonstrando preocupação pelos outros até o último momento de sua vida – ela faleceu. Na época, estava com 39 anos de idade. O câncer havia se espalhado para os pulmões, o fígado e o útero. Com certeza, foi causado pela chuva negra.
            As reuniões de estudo para as mães que ela havia criado continuaram por mais vinte anos. As atividades dos membros desse grupo, que tinham como propósito promover educação para a paz e opor-se à guerra e às armas nucleares, brilham até hoje como uma gigantesca realização.
            Num certo momento, o filho da Sra. Yamashita perguntou-lhe, enquanto a ajudava a fazer um cartaz para ser usado em uma manifestação: “Por que as guerras acontecem mesmo as pessoas sabendo que ela é ruim?”
            A mãe respondeu: “Antes de se darem conta do que está ocorrendo, as pessoas são arrastadas por uma correnteza que as leva à guerra. Essa é a natureza humana. E isso é algo terrível”. Ela se recordou das primeiras palavras da constituição da Unesco e perguntou ao filho se ele as havia aprendido na escola: “Uma vez que a guerra nasce na mente dos homens, é na mente dos homens que se deve criar as defesas da paz”.
            Então, ele perguntou: “O que significa a guerra nascer na mente dos homens?”
            “A tendência que as pessoas têm de odiar umas às outras, de pensar: ‘Enquanto eu estiver em segurança, nada mais importa’, de ver o sofrimento dos outros com indiferença – tal atitude definitivamente conduz à guerra. A única maneira de se proteger contra esse mal é construir as ‘defesas da paz’ na mente das pessoas.”
            “Mas como a guerra pode ser eliminada?” ele continuou.
            Com um leve suspiro, ela respondeu: “Ainda não sei.”
            Parece que ela percebeu claramente a negatividade enraizada no carma coletivo das pessoas. Pelo fato de ter dedicado sinceros esforços para mudar a realidade da sociedade, ela compreendeu com clareza o quanto é difícil mudar o coração das pessoas.
            Dois anos após a Sra. Yamashita ter falecido, seu filho mais velho, Yoshinori, conheceu o Budismo de Daishonin e começou a praticá-lo. Como teve de enfrentar e superar o medo da morte como resultado de sua exposição à bomba atômica, ele se tornou a principal força das inúmeras publicações antibélicas produzidas pelos membros da Divisão dos Jovens de Hiroshima. Hoje ele está participando vigorosamente das atividades em prol da paz mundial juntamente com outros membros da Soka Gakkai de Hiroshima como uma figura central na Divisão Sênior.
            Seu relato ilustra a unicidade de pais e filhos; com certeza, ele criou uma eterna ligação com a mãe. Acredito que ela deve estar realmente feliz por seus contínuos esforços em prol da paz.
            As orações da Sra. Yamashita e das outras mães para “construir as defesas da paz na mente das pessoas” são parte do grande rio do movimento popular pela paz do mundo.
            Incontáveis pessoas no mundo sofrem por alguma razão. Devemos estender nossa ajuda a todas elas. Na verdade, com esses esforços ajudaremos a nós próprios.
            Quando ocorre um infortúnio, as pessoas tendem a imaginar que não há ninguém mais miserável que elas. Em conseqüência disso, elas se atolam na autocomiseração, esquecendo-se de tudo e de todos. No entanto, ao ficarem completamente envolvidas apenas com seus sofrimentos, cultivando sentimentos de descontentamento e desesperança, diminuem ainda mais sua força vital.
            Parece-me que são os laços humanos – o desejo de viver pelo bem dos outros – que podem nos dar a força para sobreviver em meio a tais infortúnios. Enquanto a pessoa estiver dominada pelo egoísmo, não haverá felicidade. Somente quando ultrapassamos nossos limites e agimos em prol de outras pessoas é que nossa vida pulsa com vitalidade.
            De acordo com a psicologia, freqüentemente ouvimos que, o ato de preocupar-se com outros traz um efeito estimulante sobre a própria saúde mental e emocional da pessoa. Aqueles que agem sob estresse ou ansiedade tendem a despender seu tempo refletindo infinitamente sobre seus próprios problemas. Um dos métodos de tratamento para tal condição é reunir um grupo de pessoas com essa mesma tendência e orientar cada uma a direcionar suas energias para refletir sobre o problema do outro e tentar ajudá-lo. Isso é para que aprendam a se preocupar com as pessoas que estão sofrendo tanto quanto eles. É criando um ambiente em que as pessoas podem ouvir umas às outras e, juntas, tentar encontrar soluções para seus problemas. As pesquisas apontam que esse tipo de terapia de grupo resulta em um acentuado aumento na força e no desejo de se envolver com o que se passa ao seu redor.
            Quando encorajamos alguém, revigoramos nosso próprio espírito. Isso é algo que freqüentemente experimentamos nas nossas atividades budistas.
            Quando nos preocupamos com os outros e os ajudamos – ou melhor, encorajamos os outros a extraírem a força para viver – nossa própria força vital aumenta. Quando incentivamos às outras pessoas a expandirem seu estado de vida, nossa vida se expande simultaneamente. Essa é a maravilha do caminho de Bodhisattva: as ações dedicadas ao bem-estar dos outros estão completamente ligadas às ações para beneficiar a nós próprios.
            Restringir-se ao mero ato de falar sobre “beneficiar os outros” equivale à arrogância. Limitar-se a apenas pronunciar as palavras “salvar as pessoas” é sinônimo de hipocrisia. Somente quando compreendemos que nossos esforços em prol das outras pessoas são também para nosso próprio bem é que podemos considerar que estamos praticando com verdadeira humildade.
            Nossa própria vida e a vida das outras pessoas são definitivamente inseparáveis. Portanto, o caminho de bodhisattva é o correto caminho da vida. Em outras palavras, quando ajudamos os outros, estamos ajudando a nós próprios.
            Um sobrevivente dos campos de concentração do Holocausto atribuiu sua sorte de continuar vivo por acreditar firmemente que: “Em nosso grupo, compartilhávamos tudo; e no momento em que alguém do grupo comia algo escondido, sabíamos que ali começava seu fim.”[26] É uma verdade da vida aprendida em meio às mais extremas circunstâncias.
            A partir do momento em que alguém perdia o espírito de compartilhar algo com os outros, essa pessoa começava a morrer. Esse é um depoimento que provoca arrepios.
            Com certeza, é impossível para os que não estava lá presente discutirem profundamente sobre a experiência em um campo de concentração; foi um sofrimento dilacerante. E, por essa razão, essa é uma valiosa lição para a humanidade e também uma cruel realidade.
            Apesar de milhares de sobreviventes dos campos terem carregado cicatrizes psicológicas durante toda sua existência, um deles declarou que absolutamente não sofreu por causa da experiência nos anos que sucederam à guerra. Ele explicou que a razão disso foi que em Auschwitz ele veio a compreender o verdadeiro significado da amizade. “Quando eu era criança, pessoas estranhas me protegiam com o corpo das tempestades de vento, pois não tinham nada mais para oferecer exceto sua própria vida.”[27]
            É claro que houve indivíduos que caíram no nível de animais, buscando proteger apenas a si mesmo; entretanto, não podemos considerar isso um absurdo, levando em conta os extremos sofrimentos que enfrentaram. No entanto, também houve aqueles que usaram seu próprio corpo como ‘escudos’ para proteger as crianças das tempestades que os açoitavam.
            O psicólogo que apresenta essas experiências, o Dr. Julius Segal, nos alerta que a era moderna está presa em uma armadilha do narcisismo. Ele afirma: “O narcisismo está se tornando uma característica incrivelmente comum e aceitável em nossa cultura. Atualmente, pensar nos outros é algo fora de moda.”[28]
            Em relação a isso, ele cita as palavras do psiquiatra vienense e um dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas, Dr. Viktor Frankl (1905 – 1997), que observou: “Somos sempre levados – forçados – a sentir alegria, ser felizes e sentir prazer.” O DR. Segal complementa: “Somos forçados a acreditar que a dedicação e a preocupação pelo bem-estar dos outros são atitudes irrelevantes e até prejudiciais à saúde.”[29] Ele faz uma observação muito interessante. A questão é se construímos uma sociedade mais feliz como resultado. Acredito que não.
            Cada vez mais, as pessoas estão se isolando, esquecendo-se da importância de encorajar os outros. Conseqüentemente, estão perdendo o desejo de viver plenamente. Deste modo, o desejo de encontrar algo “ainda mais divertido” aumenta excessivamente. É um círculo vicioso.
            É o estado de Bodhisattva – o modo de vida “número nove”, conforme o Dr. Pauling certa vez denominou – que destrói as correntes sombrias dessa armadilha.
            Há um episódio famoso que ilustra claramente esse ponto: “Alguém vai para o inferno e percebe que nesse local todas as pessoas estão sofrendo pois não podem comer, embora cada uma delas tenham diante de si uma suntuosa refeição. A razão de elas não poderem comer é que seus garfos são mais compridos que seus braços, por isso, não conseguem colocar a comida na boca. O visitante vai então para a terra do Buda. Ali percebe que os garfos também são mais compridos que os braços das pessoas. Porém, todos estão alegres. Porquê? É porque eles se revezam para que um alimente o outro.”
            Em outras palavras, a diferença entre o estado de inferno e o de Buda não se deve ao ambiente. A diferença se encontra unicamente no coração daqueles que habitam esses mundos.
            Creio que a história ressalta o porquê de ainda haver grandes sofrimentos numa época de tanta abundância, como a época atual.
            De qualquer maneira, a sociedade muda de momento a momento. A política, a economia, a moda – tudo no mundo passa por mudanças. A questão é se, em meio a tantas mudanças, o ser humano possui uma “essência”  imutável. Possuímos tal essência na Lei Mística.
            Os bodhisattvas são considerados como aqueles que “buscam a iluminação superior e salvam os seres sensíveis inferiores”. De nosso ponto de vista, eles correspondem à prática para si e para os outros. Nós encontramos nossa própria felicidade e ajudamos os outros a fazer o mesmo.
            Isso se assemelha aos dois movimentos de um planeta, que gira ao redor de seu próprio eixo enquanto circula ao redor do Sol. Esse é um princípio universal.
            De certo modo, os bodhisattvas se esforçam para ajudar as pessoas a se tornarem felizes, mesmo que tenham de adiar sua própria felicidade. Esse é o espírito da Soka Gakkai e o caminho mais nobre da vida.
            A fé é uma luta. A vida é uma luta. E o budismo é uma luta. Somente quando empreendemos uma luta corajosa e determinada contra a “maldade” é que podemos fazer manifestar os estados de Bodhisattva e Buda que estão inerentes em nossa vida.
            Este mundo está dominado pelo Demônio do Sexto Céu, que exerce uma poderosa “força de miséria” sobre todas as pessoas. É por isso que quando uma pessoa verdadeiramente feliz aparece, o Demônio do Sexto Céu a inveja, a odeia e tenta destruí-la. Tanto Nitiren Daishonin como Sakyamuni combateram essa influência negativa.
            Devemos desafiar e derrotar a negatividade na vida, que leva os indivíduos a se ressentirem com outros, a perseguirem-nos e a manterem-nos em um estado de miséria. Somente quando vencemos as forças maléficas, em nós mesmos, é podemos alcançar a verdadeira felicidade, ou o estado de Buda. É por isso que Nitiren Daishonin nos clama: “Cada um dos senhores deve reunir a coragem de um leão...” (END, vol. I pág. 303.)
            Uma fé igual à “coragem de um leão” deve ser a marca do estado de Buda, que também é descrito como um estado de felicidade indestrutível.
            Essa felicidade é absoluta. É denominada como “absoluta” porque uma pessoa  que está nesse estado de vida é capaz de discernir o significado de tudo o que ocorre na vida e na sociedade, é a própria sabedoria. Além disso, independentemente do que ocorra ao seu redor, o coração humano permanece sereno e imutável; isso equivale a força interior. Ademais, é “absoluto” pelo fato de a pessoa extrair livremente essa sabedoria e força das profundezas da própria vida todas as vezes que precisar.
            Com certeza, esse estado não está livre de preocupações nem de sofrimentos. Se tal vida existisse, com certeza seria monótona e entediante. Se tudo corresse às mil maravilhas, isso seria a própria ilusão, ou seja, uma mentira. As preocupações são uma parte integrante da realidade da vida.
            Nitiren Daishonin nos ensina que “desejos mundanos são iluminação”. É por possuirmos desejos e preocupações que podemos apreciar a felicidade. Por enfrentarmos e vencermos grandes dificuldades é que podemos alcançar o estado de Buda. A verdade é que uma vida isenta de sofrimentos é o mesmo que uma vida sem felicidade. Essa é a perspectiva budista.
            Então, o que vem a ser o estado de Buda? De nosso ponto de vista, não é nada mais que ter fé.
            O segundo presidente da Soka Gakkai, Sr. Jossei Toda declarou: “Alcançar o estado de Buda não significa simplesmente se tornar um buda ou seguir nessa direção. Acreditar sinceramente no ensino de Daishonin de que as pessoas comuns são as mais dignas de respeito, no princípio da verdadeira entidade da vida e ter a profunda convicção de que sempre fomos budas assim como somos, desde o eterno passado até o infinito futuro – isso é o que significa tornar-se um Buda.”[30]
            Isso é fé e determinação. É uma questão de nossa conscientização interior. 

 


Notas:

[1] A meditação sobre os Dez Objetos: meditação sobre 1) O mundo dos fenômenos que existe por força dos cinco componentes, a relação entre os seis sentidos e seus seis propósitos e as seis consciências que se originam dessa relação; 2) Desejos mundanos; 3) Doença; 4) Efeito cármico; 5) Funções malígnas; 6) O efeito da contemplação; 7) Visões distorcidas; 8) Arrogância; 9) Os dois veículos; 10) O estado de Bodhisattva. Com essas meditações, pode-se compreender as limitações dos nove estados.

[2] As Dez Meditações: 1) A meditação sobre o espaço inescrutável (esta prática é a base das outras nove); 2) A prática para estimular a compaixão; 3) A prática para desfrutar segurança nos domínios da verdade; 4) A prática para eliminar os apegos; 5) A prática para discernir o que conduz à realização da verdadeira entidade da vida e o que a impede;  6) A prática para fazer uso correto das trinta e sete condições que conduzem à iluminação; 7) A prática para remover os obstáculos para a iluminação por meio da pratica dos seis paramitas; 8) A prática para reconhecer o estagio do seu progresso; 9) A prática para estabilizar a mente; e 10) A prática para remover a última barreira para a iluminação.

[3] Os Vinte e Cinco Exercícios Preparatórios: Exercícios para serem dominados antes de se iniciar na prática da meditação. Incluem o controle da vida diária com a prática dos preceitos, a obtenção de alimentos e vestimentas apropriadas, a supressão dos cinco desejos que nascem dos cinco sentidos, etc.

[4] Contemplação Tríplice em uma Única Mente: Meditação para perceber a união das Três Verdades (Não-Substancialidade, Existência Temporária e o Caminho do Meio) em um único momento da vida.
    

[5]  Daibadatta buscava apresentar-se como superior ao Buda e ganhar reconhecimento na sociedade defendendo as cinco práticas. Conforme detalha o Shibunritsu, elas são as seguintes: vestir-se com trapos; alimentar-se somente por meio de esmolas; comer apenas uma refeição por dia; sentar-se sempre ao relento; jamais saborear o sal e os cinco sabores.

[6]  Traduzido do Francês: Victor Serge, Portrait de Staline (Retrato de Stálin). Paris, Editions Bernard Grasset, 1940, pág. 180 – 183.

[7] Fiodor Dostoievski, The Brothers Karamazov (Os irmãos Karamazov). Nova York, Random House, 1945, pág. 283.

[8] Yojana: (sânscrito) Unidade de medida utilizada na Índia antiga, igual a distância que se considerava que o exército real fosse capaz de marchar em um dia. As aproximações variam entre 9, 6, 16 e 24 quilômetros.


[9]  M. Scott Peck, M. D., People of the Lie: The Hope for Healing Human Evil (Os Mentirosos: A Esperança de Curar a Maldade Humana). Nova York, Simon and Schuster, 1983, pág. 73.


[10] Plutarco, As Vidas dos Homens Ilustres. Editora das Américas, 1959, tomo terceiro, pág. 339. 

[11] Miki Kiyoshi Zenshu (Obras selecionadas de Kiyoshi Miki), “Jinseiron Noto” (Reflexões sobre a vida). Tóquio, Iwanami Shoten, 1966, vol. I pág. 267 – 268.

[12] Johann Peter Eckermann, Words of Goëthe (Reflexões de Goëthe). Nova York, Tudor Publishing Company, 1949, pág. 129.

[13] Miki Kiyoshi Zenshu, ibidem, pág. 270.

[14] Tanaka Shozo Zenshu (Obras selecionadas de Shozo Tanaka), Tóquio, Iwanami Shoten, 1979, vol. XI, pág. 131

[15] Tanaka Shozo Zenshu, Tóquio, Iwanami Shoten, 1977, vol. XIII, pág. 446.

[16] Os mundos do Desejo, da Forma e da Não-Forma: As três divisões do Mundo Tríplice, habitados pelos seres que não atingiram a iluminação segundo o ponto de vista da Índia antiga. O estado de Inferno até o de Tranqüilidade e parte do estado de Alegria estão inclusos no Mundo do Desejo. Os mundo das Forma e da Não-Forma fazem parte de divisões mais elevadas do estado de Alegria.

[17] Cinco tipos de decadência: Os mantos daqueles que estão no estado de Alegria tornam-se sujos, as flores nos seus cabelos murcham, seu corpo exala mal cheiro, seu suor escorre pelos braços e se tornam inseguros. 

[18] Seis mestres não-budistas: Pensadores influentes na Índia durante a época de Sakyamuni que romperam abertamente com a antiga tradição dos vedas e desafiaram a autoridade brâmane na ordem social indiana.

[19] Sakyamuni é Siddhartha Gautama, o principe que viveu seiscentos anos antes de Jesus Cristo na região que hoje é Nepal, abandonou o palácio e a família para buscar a iluminação.

[20] Aldous Huxley , Proper Studies: The Proper Study of Mankind is Man (Estudos Peculiáres: O Homem é o Próprio Estudo da Humanidade). Londres, Chatto & Windus, 1957, págs. 283 – 289.

[21] Desdêmona: Esposa de Otelo na tragédia de Shakespeare de mesmo nome. Seu marido a assassina por sufocamento, suspeitando erroneamente que ela o havia traído. 
[22] A verdade da existência temporária: Juntamente com a verdade da não-substancialidade e a verdade do Caminho do Meio, essa é uma das três verdades formuladas pelo grande mestre Tient’ai da China para esclarecer a natureza essencial dos fenômenos. A verdade da não-substancialidade é aquela em que os fenômenos não possuem uma existência absoluta ou fixa por si próprios; a verdade da existência temporária é que apesar de todos os fenômenos serem de natureza não-substancial, possuem uma realidade provisória ou temporária que está em constante fluxo; e a verdade do Caminho do Meio é que todos os fenômenos são caracterizados tanto pela não-substancialidade como pela existência temporária; porém, em essência, não se caracterizam pela não-substancialidade nem pela existência temporária.

[23] Linus Pauling, “Pai da Química Moderna”, recebeu os Prêmios Nobel da Química e da Paz. Seu diálogo com o presidente da SGI Sr. Daisaku Ikeda foi publicado sob o título A Lifelong Quest  for Peace (Uma Eterna Busca da Paz). Quando o presidente Ikeda proferiu um discurso na Faculdade Claremont McKenna, na Califórnia, EUA (em janeiro de 1993), o eminente cientista viajou de San Francisco até Los Angeles para participar desse evento. Ele elogiou o discurso do líder da SGI, denominando-o como um “número nove”.

[24] O Monumento de Oração pela Paz Mundial foi idealizado pela Soka Gakkai e finalizado em junho de 1997. Esculpidas pelo artista francês Louis Derbré, as seis estátuas de bronze do monumento são um tributo às vítimas das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki e também a todos aqueles no mundo inteiro que sofreram os efeitos dos testes nucleares.

[25]Chuva negra: Em seguida à explosão atômica em Hiroshima, uma extensa área da cidade e do campo ficou encharcada por causa de uma forte chuva. Essa chuva continha uma excessiva quantidade de fuligem causada pela destruição da cidade e, em conseqüência disso, ficou conhecida como “chuva negra”. 

[26]Julius Segal, Winning Life’s Toughest Battles – Roots of Human Resilience (Vencendo as Piores Batalhas da Vida – As Raízes da Revitalização Humana). Nova York, McGraw Hill Book Company, 1986, pág. 103.

[27]Ibidem.

[28] Ibidem, pág. 104.

[29] Ibidem, pág. 105.

[30] Toda Josei Zenshu (Coletâneas de Obras de Jossei Toda). Tóquio, Seikyo Shimbunsha, 1983, vol. 3, pág. 175.